Felizmente ou infelizmente, que nem o ancestral mariscador de gapuia, o qual sem querer querendo inventou a Cultura Marajoara; estou eu enterrado até o pescoço no barro dos começos do mundo na grande ilha do Marajó. E Dalcídio Jurandir e Giovanni Gallo já morreram… Todos meus avós estão lá enterrados: duma parte, camponeses da diáspora da Galícia (Espanha) e enganados povoadores dos Açores (Portugal) deportados ao Grão-Pará, no século XVIII. Doutra, a cabocada saída do mato a dentes de cachorro e bala de trabuco, as raízes indígenas extraídas à corda e baraço; que por falta de história em forma de letras se perdem no além da lenda da “primeira noite do mundo”.

      Portanto, não escolhi este fado, pois sina não se pede. Que posso fazer? Acovardar-me no trono de um apartamento esperando a morte chegar ou entrar no exército Brancaleone inaugurado pelo “índio sutil” e seu escudeiro por acaso inventor d’O Nosso Museu do Marajó e autor do livro-reportagem “Marajó, a ditadura da água”… Tomar as singelas armas das letras tortas que tenho ao alcance das mãos nas teclas do computador conectado à rede eletrônica mundial. Depois que, semiletrado, dei “vencimento” de um sem número de canetas Bic e resmas de papel almaço, deixando calos aos dedos como se fossem, para mim, medalhas e cicatrizes de muitas batalhas ganhas ou perdidas.

      Triste imitação moderna dos valentes “Nheengaíbas” (nuaruaques, “falantes da língua ruim”) de outrora. Sabendo eles que estavam derrotados antes mesmo de começar a luta desigual, do mesmo modo eu não poderei perguntar aonde esta estúrdia demanda irá parar. Quem sabe, no fim desta história incrível; de derrota em derrota se há de chegar à vitória final da brava gente marajoara? Um povo incomparável de mais de mil anos de idade, que só queria ter lugar na Terra-Firme (continente) e pertencer ao país do “Arapari” (a constelação do Cruzeiro do Sul, hoje República Federativa do Brasil, na Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e na União de Nações Sul-Americanas – UNASUL).

      Para a vitória será preciso percorrer longo caminho até chegar o dia de repatriamento de peças e coleções de cerâmica marajoara dispersas entre 10 museus estrangeiros e outros mais no Brasil, inclusive coleções de particulares. Entretanto, não haverá essa manhã se o gigante adormecido não despertar para as suas origens americanas no profundo rio das Amazonas, seio da civilização neotropical de mais de mil anos de idade. São será fácil enquanto prevalecer a mentalidade iluminista dos conquistadores e a nossa Amazônia for vista como “celeiro do mundo”…

      Certamente, para a pobre gente marajoara não vai fazer a menor diferença se o tesouro de seus ancestrais se achar exilado em Paris ou no Rio de Janeiro ou até mesmo próximo à ilha do Marajó, em Belém do Pará. O que importa a ela é que a herança milenar lhe venha servir de amparo, identidade e passaporte para o futuro mediante um desenvolvimento cultural para libertação da pobreza e do analfabetismo político crônico.

      O que mais interessa a mais de 500 mil brasileiros ilhados no delta-estuário da maior bacia fluvial do planeta, em mais de 500 comunidades locais repartidas em 3 microrregiões e 16 municípios de baixo IDH; é um programa nacional de proteção aos tesos arqueológicos do Marajó integrado ao desenvolvimento territorial em cooperação internacional, capaz de induzir o desenvolvimento regional sustentável através da economia criativa da Cultura. Ou há, por acaso, algo mais renovável e sustentável a preservar a Floresta Amazônica do que a educação e cultura das populações tradicionais ribeirinhas?

      Para tanto, sem nenhum prejuízo da comunidade de Cachoeira do Arari e mais municípios marajoaras; a revitalização do Museu do Marajó pelo IBRAM como portal ecomuseulógico das ilhas do estuário amazônico; constitui séria questão de planejamento regional estratégico a ser considerada. Todavia, o claudicante “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó (PLANO MARAJÓ) e o programa Territórios da Cidadania onde este programa específico deveria ser implantado, carecem se revigorar.

      Neles, além do fundamental projeto NOSSA VÁRZEA de regularização fundiária de terras da União, também se acha o projeto de candidatura do arquipélago do Marajó à lista de reservas da biosfera da UNESCO. Lembrando-se, sobretudo, que o PLANO MARAJÓ, elaborado pelo GEI Marajó coordenado pela Casa Civil da Presidência da Republica; foi anunciado como piloto do Plano Amazônia Sustentável (PAS), da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Quer dizer, tal visão de conjunto de âmbito nacional se desvanece na esfera nacional e termina sendo uma nuvem no horizonte, quando atravessa a baía do Guajará em direção às ilhas.

      Mas estes dois projetos, a regularização fundiária de comunidades ribeirinhas e o reconhecimento pela UNESCO da área de proteção ambiental de que trata o parágrafo 2º, VI, do artigo 13 da Constituição do Estado do Pará; assim como o próprio PLANO MARAJÓ, precisam, com urgência, ser melhor conhecidos pela sociedade e debatidos pelo Congresso Nacional. Porém o silêncio que reina sobre tal assunto estratégico nos meios políticos é “ensurdecedor”. E reveladora a parcimônia da sociedade civil com que trata a demanda para tombamento da Cultura Marajoara.

      Na verdade, em seu conceito geral, o PLANO MARAJÓ constitui o mais avançado instrumento de desenvolvimento territorial com participação popular na história do estuário amazônico desde as missões da Companhia de Jesus e das ordens das Mercês e do Carmo. Porém, como os colonos ávidos de braços escravos outrora, as pequenas oligarquias municipais resistem à realização do Plano, temerosas de que o povo trabalhador lhes escape da velha tutela feudal retardatária e dos currais eleitorais para liquidar o arcaico regime de latifúndio começado com as sesmarias dos barões de Joanes (1665-1757).

      Tal atitude retardada é um lamentável equívoco! Pois, de fato, fazendeiros e comunidades podem e devem inaugurar patamar ecológico-econômico superior estabelecendo com participação institucional de estado (federal, estadual e municípios) parcerias produtivas. Antes que a invasão – já em curso – do grande capital predador venha liquidar de vez o “dolce farniente” das antigas fazendas de gado. Onde as condições de isolamento produziram – para o bem e o mal – a mais interessante cultura insular das terras baixas da América tropical, sem dúvida. O que tem potencial comparável a uma “Costa Rica” na Amazônia Marajoara.

      Brasília não sabe nem quer saber do que se está falando nestas paragens ultraperiféricas da amazonidade, nem ela tem tempo a perder na agenda do desenvolvimento nacional pautado pela ordem mundial. Por seu turno, a elite paraense – hostil ao “desenvolvimento sustentável” como seus antepassados combateram a abolição da escravidão e botaram a correr missionários também estes salvadores mais interessados na alma dos índios do que em seus direitos naturais nestes cantões do mundo – permanece cega e surda à pregação humanitária que vem do século XVII, na invenção da Amazônia; prestes a completar quatro séculos, em 2015, quando por acaso termina a prazo das metas do milênio da ONU.

      A escravidão na América do Sul começou em 1500, com o espanhol Vicente Pinzón assaltando e capturando 36 “negros da terra” na ilha Marinatambalo (Marajó, provavelmente aldeia Aruã, município de Chaves), antes do descobrimento do Brasil. E a luta contra o trabalho escravo na Amazônia começou com o levante do Bom Selvagem tupinambá, em 1619, no Maranhão e Grão Pará. Sem guerreiros tupinambás e escravos tapuias não haveria a “ruptura” de limites de Tordesilhas na foz do Amazonas levando o Marajó velho de guerra à pacificação dos Nheengaíbas, pelo payaçu dos índios, Padre Antônio Vieira. Não haveria a Adesão do Pará, em 1823, à independência do Brasil…

      A mesma peleja anticolonial e antiescravista passa pela demanda da “criaturada grande” na literatura de Dalcídio Jurandir e acaba como estuário de muitos rios e igarapés; na invenção do Museu do Marajó, por Giovanni Gallo em qualidade de instrumento de um povo à margem da História, no bojo contraditório da criação da Prelazia de Ponta de Pedras com as cooperativas do bispo Ângelo Rivatto.
Quem quer saber: quantas dissertações de mestrado e teses de doutoramento ainda vão sair desta fonte virgem que se perde, entre chuvas e esquecimento, nas ruínas dos tesos de cerâmica marajoara? Um “índio sutil” que dá voz à criaturada grande das Ilha, Baixo Amazonas, Marajó e subúrbios de Belém; um museu que teve por semente “cacos de índio” merecem mais respeito no DIA DO ÍNDIO, 19 de Abril pelo menos.

autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com