“O pecado original do século XX” denuncia falácias do liberalismo em contraponto à propaganda anticomunista
APRESENTAÇÃO
Por João Quartim de Moraes*
O Ocidente liberal se apresenta como patrono da “democracia” e dos “direitos humanos”. Os estudos que compõem este livro põem em evidência as odiosas falácias e hipocrisias discriminatórias que essa pretensão encobre e mostram que, apesar dos pesares, ao longo do século passado foram os comunistas que se puseram à frente da luta internacional pela universalização efetiva (e não apenas retórica) da ideia de humanidade. Por isso mesmo, os liberal-imperialistas, ganhadores da “Guerra Fria”, promoveram um tenaz acerto de contas com o comunismo, “pecado original do século XX”. Empenhados em ganhar também a batalha da memória, tentam matar a URSS pela segunda vez.
Logo na primeira frase do livro, encontramos referência a uma das mais venenosas peças de propaganda lançadas com esse objetivo: o Livro negro do comunismo, de autoria de um certo S. Courtois e sócios. A somatória das estatísticas fúnebres ali juntadas oferece a imagem de uma “horrível montanha de cadáveres”. Embora a contabilidade meticulosamente elaborada por esses anticomunistas profissionais comporte grosseiros exageros, Losurdo não se detém em contestar cifras. Mostra que a diabolização do poder político instaurado pela Revolução de Outubro 1917 e do movimento internacional nela inspirado serve para ocultar horrores bem piores, cometidos pelo colonialismo. Mostra mais: ao subjugarem a ferro e fogo sua imensa periferia, as potências do Ocidente se guiavam por raciocínios substancialmente semelhantes aos dos nazistas.
O constante cuidado em apoiar-se em fatos públicos e notórios e em declarações dos próprios responsáveis pelo cortejo de abominações que acompanharam a conquista do planeta pelo Ocidente imperialista torna a argumentação de Losurdo especialmente convincente. Assim, ele lembra que Hitler costumava ressaltar a afinidade profunda entre seus métodos de espoliação e extermínio com os do Far West estadunidense. Os nazistas inverteram o ponto cardeal, subjugando e massacrando os indígenas do seu Far East (a Europa Oriental), por eles classificados de sub-homens (Untermenschen). O rei Leopoldo II da Bélgica, durante o Congresso de Berlim (1884-85), em que as potências da Europa partilharam alegremente a África, declarou-se animado pelo propósito de “levar a civilização para a única parte do globo que ela ainda não atingiu”. Entre 1890 e 1911, a obra civilizatória dos belgas reduziu a população do Congo de cerca de 40 milhões a 8 milhões de habitantes. Meio século depois, Mussolini adotou a mesma ideia: após a guerra de extermínio que moveu contra os indígenas da Líbia (que teimavam em resistir à colonização italiana implantada em 1912), declarou em dezembro de 1934 que a Etiópia,“última fatia da África que não tinha patrões europeus”, não passava de um “pseudo Estado bárbaro e negreiro”. A invasão fascista levou aos etíopes alguns primores da civilização europeia: gases letais, bombardeios aniquiladores, campos de concentração etc.
A constatação de que a democracia estadunidense foi o “laboratório do III Reich” poderá talvez suscitar perplexidade entre os que não se emanciparam suficientemente das ideias dominantes. Como negar, entretanto, que o “Colosso do Norte” – como dizem os deslumbrados com o “Tio Sam” – assentou-se na deportação dos índios e na escravização dos negros? As reformas democráticas do início do século passado (instituição da eleição direta para senadores, do voto secreto, do referendum etc.) não impediram o terrorismo da Ku Klux Klan contra os negros, nem o confisco final das terras dos indígenas. Perante esse brutal contraste, estudiosos estadunidenses forjaram o conceito de “Herrenvolk democracy” (democracia dos senhores), para caracterizar as instituições de seu país. Esse conceito pode ser aplicado à “história do Ocidente em seu conjunto”. Um dos mais respeitados filósofos liberais, o britânico John Stuart Mill, justificou a pilhagem à mão armada a que seu país estava submetendo a inteira periferia do planeta com o argumento de que “o despotismo é uma forma legítima de governo quando temos de lidar com bárbaros”. Como bem sintetizou Losurdo, na passagem do século XIX para o XX, assistimos, de um lado, à extensão do sufrágio na Europa (que, porém, só se tornaria universal em meados do século XX, quando as mulheres obtiveram direito de voto), mas, de outro, à intensificação do colonialismo. Domínio da lei nas metrópoles, violência e arbítrio nas colônias: essa regra parecia óbvia mesmo para social-democratas como Bernstein, segundo o qual as raças fortes e civilizadas não podem ficar de mãos atadas por uma legalidade formal quando têm de lidar com selvagens e bárbaros. O que não o impediu de condenar o desrespeito dos bolcheviques ao formalismo legal durante a Revolução de Outubro 1917.
Lênin denunciou essa duplicidade com uma singela comparação histórica: “Os políticos mais liberais e radicais da livre Inglaterra se transformam […] quando se tornam governadores da Índia, em autênticos Gengis Khan”. Os ataques dirigidos contra a República dos Sovietes retomavam, em matizes diversos, a distinção britânica entre “civilizados” e “bárbaros”. O filósofo protonazista Spengler alertava seus congêneres sobre o perigo que a Rússia revolucionária representava para a “humanidade branca”. Nos Estados Unidos, dois presidentes, Harding e Hoover, recomendam o livro intitulado A maré montante dos povos de cor. Quem o ler, explicou Harding, “perceberá que o problema racial nos Estados Unidos não passa de um caso particular do conflito racial com que o mundo inteiro deve se confrontar”. De um lado, os brancos, de outro, os negros e os comunistas, estes classificados de “niggerlovers”. Entende-se por que a Ku Klux Klan prosperou tanto no Sul dos Estados Unidos: a segregação e linchamento dos negros era um método peculiar de combater também os comunistas.
Henry Ford, magnata do automóvel e eminente protonazista, foi outro que considerava a Revolução de Outubro “racial, não política”. É próprio dos racistas superestimar o poder explicativo do fator raça. Ford considerava os judeus, além de estranhos à civilização ocidental, inspiradores de uma conspiração mundial bolchevique. A ideia de que a humanidade se divide em superiores e inferiores foi plenamente adotada por Hitler e parceiros, com notórias consequências.
Os ideólogos liberais costumam enfatizar semelhanças entre fascismo e comunismo, apresentando-os como duas variantes do que chamam totalitarismo. Desmistificando essa impostura, Losurdo mostra que o termo foi forjado, com sentido positivo, pelos governantes e chefes militares das potências envolvidas na Primeira Guerra Mundial: “mobilização total” para a “guerra total”. Todas elas mancharam as mãos não somente com o sangue dos inimigos (como em todas as guerras), mas também com o de seus próprios soldados que foram aleatoriamente dizimados por pertencerem a uma unidade considerada indisciplinada. A repressão em massa de civis foi particularmente mortífera na Irlanda, que desde 1916 lutava por sua independência. As deportações e os campos de concentração prosperaram não somente na Europa, mas também nos Estados Unidos, onde todos os cidadãos estadunidenses de origem japonesa foram confinados durante a Segunda Guerra Mundial por decisão de Franklin Roosevelt.
Pôr em evidência a parcialidade e o facciosismo dos anticomunistas profissionais é um ganho para o conhecimento objetivo. Mas Losurdo não fica apenas na réplica. O desrespeito aos mais elementares direitos individuais é a norma geral em situações de guerra (a própria imprensa estadunidense classificou Obama de “King of Drones”); nenhuma potência, qualquer que fosse ou seja sua ideologia, absteve-se de medidas concentracionárias e de práticas genocidas. Por isso, ele propõe uma definição historicamente objetiva de totalitarismo, vinculando-o a uma situação de guerra total (o sinistro G. W. Bush falava em guerra sem fim), em que cada governo beligerante busca mobilizar e controlar totalmente a população. Não surpreende que as modalidades mais brutais desse controle totalitário tenham ocorrido nos dois países que estiveram de 1914 a 1945 no centro das tormentas: a Alemanha e a Rússia. Os autores do Livro negro do comunismo equiparam o genocídio racial e o genocídio de classe que ocorreram respectivamente nestes dois países. Essa equiparação não é a única manipulação grosseira dos fatos históricos que eles cometem. Eles não levam em conta o auxílio decisivo que Daladier e Chamberlain (chefes de governo respectivamente da França e da Inglaterra) prestaram a Hitler, assinando em Munique o pacto liberal-nazista de 1938, que lhe entregou a Tchecoslováquia. O genocídio colonial não os interessa, tampouco o dos armênios e ainda menos os de Hiroshima, Nagasaki e Dresden.
Não é só o conhecimento histórico que sai maltratado pelo raivoso zelo anticomunista do Livro negro; a lógica também sofre. Cuba seria um “totalitarismo tropical” porque marginaliza as instituições religiosas; embora aparentemente todo cubano seja livre de frequentar qualquer igreja, ele se arrisca a ser prejudicado se quiser entrar na universidade ou na administração. Mas a República Federal Alemã, antes e depois do muro de Berlim, sempre proibiu pela chamada Berufsverbot que comunistas tivessem acesso a empregos públicos. Se Courtois e parceiros fossem intelectualmente honestos e consequentes teriam de classificar de “totalitarismo boreal” o regime político da Alemanha. Quanto à China, seria ridículo falar em controle total do Estado sobre a população durante os anos da Revolução Cultural. Mas para fugir de um ridículo caem em outro: naqueles anos teria ocorrido, segundo eles, um totalitarismo anárquico. É baixo, assim, o nível dos argumentos desses anticomunistas de choque.
O historiador não é neutro, porque seu posto de observação não está instalado numa longínqua estrela polar, mas deve ser objetivo, utilizando exaustivamente as informações que lhe permitam estabelecer os fatos tais como ocorreram. Sua função não se confunde, entretanto, nem com a de um promotor público nem com a de um advogado de defesa. Não busca a condenação nem a absolvição, mas a compreensão dos acontecimentos na dinâmica concreta em que estavam inseridos. A trajetória histórica da URSS comporta muitos crimes cometidos por comunistas em nome do comunismo. Constrangida desde o início a enfrentar – a Oeste como a Leste – constantes agressões bélicas por parte das grandes potências ocidentais e do Japão, a República dos Sovietes foi convulsionada no interior por uma sanguinária guerra social no campo. A coletivização forçada da agricultura, promovida e aplicada pelo poder central, sob o comando de Stalin, levou à implacável liquidação dos camponeses médios e pequenos capitalistas rurais (“kulaks”), às deportações e ao trabalho coercitivo em larga escala. O custo em vidas humanas foi imenso.
É muito fácil, entretanto, condenar o comunismo usando como parâmetro não o comportamento real dos Estados liberal-imperialistas, não os massacres coloniais e as duas guerras mundiais, mas edificantes declarações de princípio dos ideólogos da burguesia, como fazem o Livro Negro e numerosas publicações congêneres. É evidente o caráter sofístico de uma comparação entre termos tão heterogêneos: de um lado, a imagem idealizada que os pensadores liberais oferecem de suas próprias doutrinas, de outro, os comportamentos reais dos dirigentes comunistas em situações dramáticas. Na falta de outros méritos, o livro raivoso e desonesto de Courtois terá ao menos contribuído para suscitar as densas reflexões de Losurdo sobre a dialética da revolução e da violência em nossa época. Essas reflexões permitem-lhe, sobretudo, tirar, nas páginas finais do livro, as verdadeiras lições políticas e morais da luta dos comunistas pela construção do socialismo e pela emancipação de toda a humanidade.
* João Quartim de Moraes é professor de Filosofia da Unicamp. Editor da revista Crítica Marxista. Organizador da coleção História do marxismo no Brasil e autor de livros e artigos nas áreas de história da filosofia antiga, teoria política, materialismo, marxismo, instituições brasileiras etc.