Iraque: Por que as lições do Vietnã ainda são importantes
De Hanói. Assim como em apenas poucos anos os norte-americanos perderam os corações e mentes dos sul-vietnamitas, eles perderam também, em apenas poucas semanas, os corações e mentes da maioria dos iraquianos – o que, em resumo, significa perder a guerra, seja qual for o resultado estratégico final. Negativas topográficas – aqui é o deserto da Mesopotâmia, não a selva da Indochina – não funcionam, nem funcionam as negativas que dizem que os iraquianos não são tão politizados quanto eram, pelo comunismo, os vietnamitas. Nada disso sequer se aproxima do que interessa: como aconteceu no Vietnã, o que acontece agora no Iraque tem tudo a ver com patriotismo e nacionalismo.
Como dizia, antes da invasão norte-americana, o ex-vice-premiê do Iraque, Tariq Aziz, “que nossas cidades sejam nossos pântanos e nossos prédios, nossas selvas”. Mohammed Saeed al-Sahaf, codinome “Ali Cômico” [orig. Comical Ali], o inesquecível ex-ministro da Informação, costumava dizer que o Iraque seria “outra Indochina”.
A estratégia de guerra de guerrilhas contra o que se considerava uma inevitável invasão norte-americana foi aperfeiçoada no Iraque durante anos. E o estrategista-professor não era general nem assírio nem mesopotâmico, mas o legendário Vo Nguyen Giap, general vietnamita que coordenou as vitórias contra o colonialismo francês e a intromissão dos EUA.
Os estrategistas iraquianos – de oficiais do exército a membros do Partido Ba’ath – sempre foram aplicados estudiosos da Guerra do Vietnã, que no Vietnã é chamada “Guerra Americana”. Além disso, a população iraquiana urbana é muito bem educada e analisa os eventos com profundo senso histórico – tanto quanto os vietnamitas. Os iraquianos não são ingênuos ou enganáveis a ponto de acreditarem no que dizem as forças de ocupação, que se trataria de “construir uma nação” –, e não veem nenhum resultado tangível desde a ‘queda’ de Bagdá, dia 9/4 [de 2003]. Desde o início – a primeira gigantesca manifestação popular partiu da mesquita Abu Hanifa em Bagdá, dia 18/4 [de 2003] –, a ‘libertação’ do povo iraquiano pelos EUA foi vista por muitos setores no Iraque como guerra de libertação nacional, uma “guerra popular” no sentido de Giap, contra um agressor imperialista.
Está tudo escrito em Vo Nguyen Giap – Selected Writings,[1] seleção de escritos dos anos 1969-91 publicada por Gioi Editions em Hanói: a estratégia e as táticas de uma guerra de libertação nacional e como foi organizada “a guerra popular contra a agressão norte-americana”. O Partido Ba’ath e os Guardas Republicanos não implementaram o que haviam aprendido – com os principais comandantes militares, depois de uma campanha de intimidação preventiva, afinal comprados com dinheiro do Pentágono e promessas de refúgio seguro (ver “O negócio em Bagdá”, 25/4[2003][2]). Mas basicamente, a mesma estratégia está sendo agora implementada pelos vários grupos que constituem hoje a resistência nacional iraquiana.
Em todos os casos, sempre se trata de confundir, atormentar e desmoralizar exército muitas vezes maior. Veteranos da Guerra Americana em Hanói – que se reúnem diariamente às margens do Lago Hoam Kien[3] para conversar sobre o passado e o presente – dizem que sempre se tratou de consciência nacional, patriotismo e tradições locais: segundo Giap, “o amor à terra natal, associado ao espírito democrático e ao amor ao socialismo”. No Iraque o ímpeto é o mesmo – com “amor ao Islã” substituindo o “amor ao socialismo”. O nacionalismo iraquiano e o sentimento anti-imperialista é tão forte aqui quanto foi no Vietnã.
Giap escreveu que “devem-se criar as condições para atacar o inimigo por todos os meios adequados” e as forças urbanas revolucionárias devem ser coordenadas com as áreas rurais”: hoje, significa atacar em Bagdá e no cinturão sunita (já avançando na direção do sul sunita). O passo seguinte da resistência iraquiana deve ser, aplicando-se Giap, “combinar forças armadas e forças políticas, insurreição armada e guerra revolucionária.” Implica uma estratégia concertada do cinturão sunita aliado a grupos xiitas, muitos dos quais já adotaram uma posição de “esperar para ver”, de mal disfarçada hostilidade contra o regime pró-consular norte-americano.
Giap é claro e direto: “A estratégia da guerra popular é estratégia de guerra prolongada.” A resistência iraquiana segue Giap, ao pé da letra. A ideia não é que não possa haver Saddamistas fiéis, por trás dos ataques contra os norte-americanos: se houver, serão apenas um item a mais, na mesma equação. Giap escreveu que os norte-americanos e o governo fantoche do Vietnã do Sul são apoiados por “uma repressão brutal e uma máquina de coerção, e aplicam contra nossos compatriotas uma política de barbárie fascista.” É exatamente assim que a resistência – e cada dia mais o próprio povo do Iraque – veem os soldados norte-americanos, cada dia mais apavorados e desmoralizados, atirar contra mulheres e crianças inocentes e, até, contra jornalistas estrangeiros que não conheçam. Contra a “máquina de repressão”, Giap recomenda “guerrilha e milícias de autodefesa” em zonas estratégicas – exatamente o que a resistência iraquiana tem providenciado.
O Iraque hoje [2003] já é como o Vietnã depois da Ofensiva do Tet de 1968. Os norte-americanos poderiam ter deixado o Vietnã a qualquer momento – mas teria significado vexame, no sentido asiático, e admitir a derrota. Mas, sim, foi o que aconteceu quando aquele último helicóptero decolou da embaixada dos EUA em Saigon, em abril de 1975. Ainda que tivessem alguma intenção de fazê-lo, o que não têm, a Casa Branca e o Pentágono – apesar de já terem declarado vitória – simplesmente não podem sair do Iraque [é verdade ainda hoje, dez anos depois! (NTs)]. Eles sabem que, no instante em que os EUA saírem de lá, um governo democraticamente eleito, de maioria xiita e antiamericano assumirá o poder [já aconteceu[4] (NTs)] – assim como um governo comunista antiamericano assumiu o poder no Vietnã. Se os EUA permanecerem no Iraque “por anos” – como diz o Pentágono – a questão será sempre a mesma: quantos sacos de cadáveres serão necessários, antes de que a opinião pública norte-americana exija a retirada?
Os ataques da resistência iraquiana são executados por grupos pequenos, quase todos bem treinados, que em geral conseguem safar-se sem baixas. Seguem o ensinamento clássico de Giap: desmoralizar os soldados dos EUA e, ao mesmo tempo, aumentar o sofrimento já insuportável da população, para, assim, manter vivo o ressentimento contra as forças de ocupação. Asia Times Online tem ouvido vários ex-altos oficiais do exército de Saddam – agora desempregados – que têm sido convidados a unir-se à resistência; respondem, invariavelmente, que, sim, acabarão por se unir à resistência, “se os EUA continuarem a nos humilhar”. Outros estão financiando pequenos grupos de guerrilheiros, ao custo de milhares de dólares. A recompensa para qualquer um que lance um foguete contra veículo de combate norte-americano é de cerca de US$350 – o suficiente para comprar o que é hoje um sonho de consumo, encontrável no mercado parcialmente livre em Bagdá: um aparelho de televisão em cores conectado por satélite.
No Vietnã, a resistência foi organizada pelo Partido. No Iraque, é organizada pelas tribos. Chefes de tribos – praticamente todos eles defensores de Saddam – estão já próximos do fim do “período de graça” que concederam aos norte-americanos. A resistência conta tanto com ex-oficiais do exército e membros do ex-Partido Ba’ath, como com jovens desempregados que respondem ao apelo de clérigos sunitas, seus chefes tribais; e, em termos mais gerais, com o patriotismo árabe.
A resistência pode contar, em termos potenciais, com 600 mil indivíduos, que foram desmobilizados pelo regime pró-consular norte-americano. Com mais de 20 anos de guerra, praticamente toda a população masculina do Iraque já está militarizada. Mais de 7 milhões de armas foram distribuídas pelo regime de Saddam Hussein. Milhões de foguetes e morteiros foram abandonados, quando o regime entrou em colapso. A organização da luta armada no Iraque – no sentido de Giap – pode ainda engatinhar, mas os resultados são cada dia mais devastadores. A “guerra popular” se aprofunda: mísseis terra-ar lançados contra aviões de transporte; sabotagem no oleoduto Kirkuk-Ceyhan. O Comando Central dos EUA admite que o número de ataques já chega a 25 ataques por dia.
Esses mujahideen sunitas iraquianos – contraparte dos mujahideen sunitas afegãos que lutaram na jihad antiamericana no Afeganistão – contam com a ativa cumplicidade da população local, exatamente como no Vietnã. Tudo se encaminha para uma “guerra popular” no sentido de que todos, em cada bairro ou comunidade, sabe quem organizou cada ataque, mas nada informam aos invasores. Mas e quanto aos vídeos em que Saddam incita a uma jihad contra os norte-americanos? Saddam não é Ho Chi Minh – líder legítimo de uma luta de libertação nacional. Não há no Iraque muita nostalgia de Saddam. Nem os ex-oficiais do exército têm saudades – ou, vale registrar, mostram-se muito otimistas quanto ao sucesso dos guerrilheiros. Eles sabem que, mais uma vez, o povo iraquiano será a maior vítima – com os norte-americanos obcecados sobretudo com a própria segurança, não com a segurança do povo do Iraque. Mas, mesmo assim, muitos ex-oficiais mostram-se prontos a unir-se à resistência.
Em 1995, no 20º aniversário do fim da Guerra Americana, o ex-secretário de Defesa dos EUA Robert McNamara teve um encontro com o legendário Giap em Hanói. O velho guerreiro disse-lhe que os EUA entraram naquela guerra sem saber coisa alguma da longa e complexa história do Vietnã, de sua cultura e do espírito de luta contra ondas de invasores. McNamara teve de concordar. Os EUA saíram do Vietnã cobertos de vergonha e humilhados. No Iraque, os empresários bushistas esperam levar, pelo menos, o petróleo. E os jovens soldados norte-americanos estão morrendo exatamente por isso: a Ordem Executiva n. 13.303, assinada por George W Bush em maio passado [2003].
A Ordem Executiva n. 13.303 declara que, no que tenha a ver com “todo o petróleo e derivados no Iraque, e interesses associados a esses produtos”, “todos os contratos, sentenças, decretos, ordens executivas, guarda, produção e todos os processos judiciais ficam proibidos, e devem ser considerados nulos e cancelados.” Em outras palavras, segundo Jim Vallette, do Instituto de Estudos Políticos em Washington, “o decreto de Bush, na realidade, declarou que todo o petróleo do Iraque passava a ser propriedade definitiva das empresas de petróleo dos EUA.”
A resistência iraquiana conhece perfeitamente os termos da Ordem Executiva n. 13.303 – e por isso vive a sabotar e continuará sabotando o crucial oleoduto Kirkuk-Ceyhan. Quanto mais os iraquianos sejam obrigados a esperar que o dinheiro do petróleo volte a correr na direção do Iraque e ajude a reconstruir o país, mais o governo de transição imposto pelos EUA perdera sua já fraquejante credibilidade. De tudo isso, a população iraquiana só sabe, com certeza, que a gasolina é vendida a preços altíssimos sempre no mercado negro; e que, nas casas, só há eletricidade durante três horas por dia.
Giap também escreveu que a resistência no Vietnã tinha de “esmagar o projeto maquiavélico do imperialismo norte-americano, de fazer vietnamitas combaterem contra vietnamitas, de alimentarem guerra com guerra.” Os norte-americanos estão cometendo o mesmo erro no Iraque.
Os EUA foram ao Vietnã, dentre outros fatores, para reforçar a própria credibilidade simbólica e exibir novas tecnologias militares. No Iraque, a demonstração teatral foi, sem dúvida, poderosa, mas a credibilidade simbólica está sendo reduzida a cinzas. No Vietnã, os EUA quiseram fazer uma demonstração de como esmagar regimes revolucionários nacionais, no sempre depreciativamente ainda chamado Terceiro Mundo. Falharam miseravelmente. No Iraque, os EUA sonharam com mostrar como “corrigir” regimes ex-fregueses que se desencaminhem. Também estão falhando miseravelmente – com as condições ali cada dia mais maduras para uma guerra popular que leve ao surgimento de mais um regime nacional revolucionário.
A ideia do n. 2 do Pentágono, Paul Wolfowitz, para uma ordem política e econômica no Iraque é em tudo semelhante ao que os EUA queriam no Vietnã do Sul – e semelhante também ao que os EUA estavam forçando em todo o Terceiro Mundo nos anos 1950s e 1960s. No Vietnã, os EUA tinham o poder e o controle de um governo fantoche (do Vietnã do Sul). Mas falharam completamente e não conseguiram criar sistema político, econômico e ideológico viável, capaz de resistir à revolução dos vietnamitas. Implica que a derrota não militar dos EUA foi ainda mais crucial que o impasse militar em que se meteram.
O mesmo pode estar acontecendo no Iraque. Wolfowitz e companhia não estão, não, de modo algum, interessados em alguma democracia, porque sabem que em eleições livres, justas e democráticas, o Iraque se encaminhará para governo xiita, provavelmente regido pela lei da Xaria, e com absoluta certeza antiamericano. No Iraque, como no Vietnã, os EUA só implantaram um sistema militar de fato. Esse sistema deverá controlar – ou, eufemisticamente, “supervisionar” – a estrutura política e, mais importante, como Asia Times Online já demonstrou,[5] a nova ordem econômica subsidiada pelos EUA. Em todos os sentidos, pelo projeto de Wolfowitz, o Iraque deve ser convertido em colônia dos EUA.
No Vietnã, os EUA não foram capazes de converter seu descomunal poder de fogo em algum tipo de sedução política. Dialéticos refinados, os veteranos da Guerra Americana, hoje, em Hanoi, dizem que, de tanto bombardear indiscriminadamente o Vietnã, os EUA provocaram trauma psicológico e econômico quase insuperável: desse modo, os EUA jamais conquistarão corações e mentes. Sobre o Iraque, hoje, do qual também falam, dizem que o Pentágono ainda não aprendeu uma lição de importância crucial: é absoluta e completamente impossível abordar com violência uma sociedade complexa, sem provocar corrosões sociais que, na continuidade, sempre levarão ao colapso de qualquer regime fantoche.
Se Washington subestimar a resistência iraquiana, o risco é seu. A resistência está aprendendo depressa, na luta, as lições do Vietnã – onde os comuistas, em guerra longa, derrotaram a maior máquina de guerra que o mundo jamais produzira, e por três razões, como diria Giap: a descentralização, a mobilização de massa e táticas militares de alta mobilidade. Giap articulou um conjunto de manobras políticas, organizacionais e técnicas, para contrabalançar a gigantesca máquina de guerra dos EUA, que pode ser aplicado pelas forças de resistência em qualquer ponto do mundo, especialmente no Iraque [em 2003, ou na Síria, em 2013, por que não? (NTs)].
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[1] Vo Nguyen GIAP, “Guerra do Povo, Exército do Povo”, Editora Ulmeiro, s/d. Tradução Manuel Reis Ferreira, Edição e Coordenação José Fortunato, Lisboa (https://www.marxists.org/portugues/giap/ano/arma/index.htm). Em http://www.primeiralinha.org/textosmarxistas/chegiap.htm, lê-se o prólogo à edição cubana de 1962, escrito por Che Guevara (esp.) [NTs].
[2] http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/ED25Ak04.html (ing.)
[3] http://en.wikipedia.org/wiki/Ho%C3%A0n_Ki%E1%BA%BFm_Lake
[4] “O primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki, foi eleito para um terceiro mandato como presidente do Partido Dawa Islâmico, em eleições das quais participaram inúmeros líderes políticos iranianos, mas que mídia ignorou completamente. Essa eleição é o primeiro passo no processo pelo qual Maliki deve renovar pela terceira vez seu mandato como primeiro-ministro. O Partido Dawa Islâmico é um dos mais antigos partidos religiosos do Iraque. Foi fundado em meados dos anos 1950s, inspirado pelas ideias do conhecido clérigo xiita Muhammad Baqir al-Sadr.” (18/3/2013, “Maliki Reelected as Dawa Head for Third Time”, Mushreq Abbas, Al-Monitor, http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2013/03/maliki-reelected-as-dawa-head-fo.html#ixzz2gqwffAMV) [NTs].
[5] http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/EH13Ak01.html
Publicado em 20/8/2003, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/EH20Ak04.html