É Brasil…
Depois da Feira do Livro de Frankfurt, eu e a Zinka tomamos o avião de volta para Berlim, no domingo, final de tarde.
Por mais exíguo que seja o assento (e é), por mais parco que seja o serviço de bordo (e é), sempre é uma oportunidade para relaxar. Lamentei até que o voo fosse tão curto: 50 minutos. Porque depois viria a azáfama, o corre-corre de pegar mala, arrastá-las pelos corredores, tomar condução, descer no Zoo (antiga estação central da ex-Berlim Ocidental), arrastar de novo as malas, tomar o metrô, descer, arrastar de novo as malas, chegar ao edifício, subir ao primeiro andar…
Nos primeiros instantes de meu relaxamento, lembrei-me de alguns atos típicos da nova brasilidade que estamos vivendo, desde que setores da velha classe média e black bocs pirados resolveram desencadear uma campanha anti-governo brasileiro, com ânimos exacerbados por toda parte e por todos os lados envolvidos.
Há um certo frenesi de soltar a franga, convenhamos, em qualquer lugar e de qualquer jeito. Fala-se tudo o que se pensa e sobretudo o que não foi pensado, mas veio aos borbotões para fora – sempre com acolhida na velha mídia, desde que seja contra o governo. E também em boa parte da mídia internacional, onde grassa um desejo obsessivo de “desconstruir” o Brasil, uma vez que ele se tornou um pulgão – talvez um enorme percevejo, quem sabe uma mutuca das boas, na camisola neo-liberal que, esfrangalhada, teima em se esticar para ocultar a crise de teoria e práxis que está vivendo.
Duas reações da brasilidade me vieram à tona, ambas na sessão de abertura. A primeira foi ao final do discurso do Luiz Ruffatto: um discurso duro, expondo as mazelas seculares da nossa terra, com um pequenino parágrafo de duas frases mais ou menos, dizendo que “nos últimos dez anos as coisas tinham melhorado”. Ao fim, em meio aos ensurdecedores aplausos de pé, um prestigioso intelectual brasileiro presente levantou-se e gritou que era melhor o Ruffatto “mudar-se do país”. Tudo bem: apesar da justiça do discurso dele, achei-o um pouco exagerado e algo complicado para o momento, de abertura da feira, devido ao exagero. Mas não é por isso que vamos reeditar um “Brasil, ame-o ou deixe-o”, não é mesmo?
A segunda ocasião veio ao final do discurso do vice-presidente Michel Temer, que fez muitos elogios ao Brasil do Bolsa Família, do aniversário da Constituição Cidadã (como a velha mídia calcou depreciativamente este nome dado por Ulysses Guimarães!), etc., com exageros de vice-presidente, é claro. Na segunda parte do discurso o vice-presidente (haverá aí algum complexo de vice, dado exemplos anteriores, tipo “Marimbondos de fogo”?) evocou suas primeiras experiências de leitura, atravessando pelo campo 6 km a pé, ainda menino, para ir até a Biblioteca Pública mais próxima, e seu primeiro livro de poemas, recentemente editado. Ao final, no assomo de não-sei-o-quê, um grupo de umas 20 pessoas brasileiras, situadas à minha direita, no fundo, ensaiou uma vaia, que sumiu debaixo dos aplausos, mesmo que protocolares se assim o fosse. Os alemães não devem ter entendido nada. A velha mídia brasileira também não entendeu, mas captou o instante e as manchetes lascaram: “Temer vaiado em Frankfurt”, ou algo assim. Parecia que a cidade inteira estava vaiando o vice, quando, na verdade, o que acontencera fora um gesto de deseducação por parte de uma pequeníssima parcela das mais ou menos duas mil pessoas que lotavam o auditório (cerca de 1%, ou menos ainda, se levarmos em conta o pessoal do lado de fora, que não entrara).
Ficava eu pensando, de olhos fechados, nestes sintomas de desarrazoamento espiritual que vem assaltando brasileiros em momento de rápidas mudanças sociais, e como isto afirma velho hábito de muitos viajantes de falar mal do Brasil, ou vaiá-lo simbolicamente, quando no exterior, achando que isto agrada europeu, quando assaltou-me a apreensão da conversa no banco de trás, para que a Zinka me chamou a atenção.
Eram duas vozes, uma masculina, que falava mais, e outra feminina, que concordava com tudo. Visivelmente, ou melhor, auditivamente eram marido e mulher, que viajavam e comentavam as benesses da viagem – logo apreendi – à “civilização”, para longe da “nossa barbárie”…
Espremido na poltrona menor que os sete palmos medidos do poema do João Cabral, ouvi a voz masculina dizer: “como o voo aqui é melhor do que o da… (a companhia nacional com que tinham chegado a Frankfurt)! O serviço de bordo é muito melhor!”.
Aí veio a informação principal: “até o gelo daqui tem gosto melhor do que no Brasil!”.
E a voz feminina concordava.
Só falta elogiarem o café, eu pensei.
Daí a conversa concentrou-se abaixo do avião.
“Olha como tem verde!”, disse a máscula voz. “Muito mais do que no Brasil!” (Pobre Floresta Amazônica, eu pensei). “É”, disse a fêmina consorte, “mas olha como tem folhas amarelas. Por que será?” O silêncio que se seguiu deixou-me em dúvida: seria um silêncio obsequioso, diante da estupidez da pergunta, ou seria um silêncio filosófico, manifestando igual perplexidade diante de uma natureza exótica e abstrusa? Lembrei-me de outra ocasião, de outro comentarista igualmente perplexo diante de tais manifestações da alteridade, de uma natureza “outra”, no caso hibernal, aqui em Berlim, diante das árvores que tinham perdido esmagadoramente suas folhas: “Nossa! Eu não imaginava que a Segunda Guerra tivesse feito tanto estrago!”.
Daí o másculo sábio comentou: “Você se lembra da neve que vimos lá embaixo?” (Deve ter sido atravessando os Pirineus, eu conjeturei). “Como era bonita vista daqui de cima, tudo branquinho… É, mas pra quem vive lá embaixo a neve é um inferno!”. Bom, pensei, ele deve ter lido Dante, pois no fundo do inferno o poeta encontra gelo (que também deve ser melhor do que o do Brasil) ao invés de fogo. Não pude também reter o pensamento: serão eles membros da nova ou da velha classe média? Oh, dúvida cruel… E o Marcio Pochmann não estava ao alcance da voz para me esclarecer… nem o Ricardo Antunes, nem a Marilena Chaui… Meu iPad não tinha internet no avião… Eu estava perdido… Mas salvou-me o próximo capítulo, aquoso.
“Olha o rio! Que bonito!”, disse a voz feminil. “Pois é”, retrucou a macha voz, “pode ser o Reno”. Tudo, pensei eu, menos o Reno, que fica pros lados da França. Pode ser até o Elba. “Mas olha”, continuou a virília voz, “parece um espelho. Sabe, aqui na Europa os rios são todos limpos. Não há rios barrentos como lá.” Puxa, eu pensei, se o Gonçalves Dias tivesse ouvido esta conversa… Teríamos: “Os rios que aqui correiam/Não barreiam como lá”. Perdeu-se um grande poema!
“Você vai ver”, atacou de novo a máscula garganta, “como as estradas daqui são melhores. São lisinhas, não têm nenhum buraco! A gente pode passar de 100 numa boa!”. Imaginei que a admiração subiria de tom se ele soubesse que os alemães adoram andar a 300, e ficam furiosos porque nos outros países, como a França, as auto-estradas têm limite de velocidade. Mas não pude deixar de reconhecer: de fato, as estradas europeias são, em geral, melhor conservadas do que as brasileiras. A voz marcara um ponto.
Mas logo adiante ela desfez o ponto que fizera. O avião pousava. E ela, a voz: “Veja esta pista, é perfeita! Parece uma seda!”.
Ufa!, pensei. Chegamos. Felizmente o voo era curto. E logo viria a azáfama, o corre-corre de pegar as malas, arrastá-las pelo corredor, tomar a condução… e fugir, fugir, fugir daquelas vozes, que, no entanto, os anos não apagarão jamais.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel.
Publicado no Blog da Boitempo.