Precarização e rebeldia na garupa de uma moto
Meu pai, há algum tempo atrás, me falou:
“Pô, filho, lá pelo final dos anos 80, eu fui atrás de um trampo na Praça da Sé. Tinha uma placa assim: ‘registramos sua carteira, entre aqui’” – e ele entrou.
Chegando lá, a ideia era a seguinte: “olha, isso aqui é um filtro de água, temos esse novo modelo, que a gente vai introduzir no mercado, e você tem que entender melhor como ele funciona” – e fizeram toda uma palestra para mostrar o filtro novo. Falaram: “o acordo é o seguinte: se num mês você conseguir vender 20 filtros de água, a gente registra sua carteira”.
Meu pai pegou os 20 filtros, voltou aqui pro lugar onde a gente mora, e tentou vender, de porta em porta. Vendeu 14. Voltou na Praça da Sé, com os seis que sobraram, e entregou. O pessoal falou: “você não quer pegar mais 20 e tentar vender num mês? Se conseguir, a gente registra sua carteira”. Ele falou: “não acho bacana, vocês não vão me dar nada por isso”. E aí, depois de contar essa história, ele falou: “é isso, filho, que você fala nas suas lives? Isso que é a uberização?”.
“É isso mesmo, pai. Desse jeitinho mesmo”, eu falei.
Há um bom tempo eu ficava matutando na minha cabeça sobre qual é o produto mais cobiçado do mundo. Eu pensava que era o petróleo. Pensava: “mano, é tanta guerra, tanto caos social que os capitalistas criam por causa do petróleo. Deve ser ele”. Mas aí parei pra analisar: como é que esse petróleo vai virar gasolina se não tiver trabalhador? O produto mais cobiçado do mundo, portanto, é a força de trabalho. Um companheiro meu fala: “quem controlar os úteros, controlará a humanidade”. A ideia é de que o útero de mulher pobre, de país de Terceiro Mundo, é fábrica de operários, entendeu? É, então, interessante que essa mulher tenha quatro, cinco filhos, que eles não tenham acesso à boa educação e alimentação, para que cresçam para serem cobradores de ônibus, motoboys ou qualquer outra coisa que sirva a alguém.
Mas a coisa vai ficando mais sofisticada com o passar do tempo. Eles não podem mais vir na minha casa, no meu bairro, entrar num bar ou parar um ônibus da comunidade para caçar o pessoal, falar “ô, escravo, vem cá!”, grudar uma corrente no meu pescoço e me colocar para trabalhar de graça. Tem que ser diferente. Ah, uma coisa aqui, olha que irônico: ninguém vai conseguir assistir a uma live minha, do “Galo” que é contra a uberização e a lógica dos aplicativos, sem antes ver um comercial do iFood. E aí fico pensando: quando hambúrgueres será que eu já vendi pra esses caras com minhas ideias?
A exploração vai se sofisticando. Eles te escravizam sem você perceber, fazem você entregar sua força de trabalho de graça e sorrindo. Muitos falam: “agora a gente é livre, a gente faz nosso próprio horário”. Mentira! Quem faz o meu horário são as minhas dívidas. Que trabalhador vai acordar às cinco da manhã e voltar depois da meia-noite, sete dias na semana, se a vida estiver tranquila? Quem faz o horário é o locatário da casa em que ele mora que está batendo na porta, falando “e aí, cadê o aluguel?”; ou o banco, “cadê a prestação da moto? Vamos tomar ela, malandro!”; ou o cara da Sabesp que tá na porta contando o número do relógio, e você tem que conversar com ele para não cortar, pelo amor de Deus, a água, e o cara fala: “vou te dar até as 18h para você pagar as contas, bacana. Se não, vou ter que cortar”. Quem é que monta o horário do trabalhador?
Quando eu comprei a minha moto, parcelada, eu não tinha um real no bolso. Tirei ela a R$ 650 por mês. Minha filha tinha nascido e eu precisava trabalhar – e a única coisa que eu sabia fazer, com registro em carteira, era ser motoboy. Mas não havia emprego na área e tive que me cadastrar em um aplicativo. “Isso aqui é um lixo”, falei para mim mesmo quando comecei a trabalhar. Só que não dava para voltar atrás e entregar a moto para o banco. Eu tinha uma filha pequena e a possibilidade da barriga dela roncar era aterrorizante para mim. Tive que enfrentar isso. Isso é liberdade? Eu fico de cara quando vejo povo branco, bonito e bem-arrumado falando em liberdade. “O mercado tem que ser livre”. “Liberdade, liberdade!”. Penso: para cima de mim? Tem ideia do que é liberdade para pessoas como eu? A liberdade que eles pregam é cara demais para a gente comprar.
Vou ser sincero: o problema desses aplicativos é que eles também são grandes coletores de dados. Foram feitos para queimar carta. O que está para vir depois que vai ser o grande problema. Aplicativo é fichinha. Eles querem saber: quanto tempo o Galo aguenta trabalhar por dia sem reclamar? Quanto tempo aguenta ficar sem comer? Quanto tempo aguenta ficar na chuva ou no calor? Quando ele se machuca? Quanto dias fica em casa? Eles estão montado um gráfico da classe trabalhadora – não só dos entregadores, mas de todos. Querem saber até onde a gente suporta. Sabem: “olha, julho teve a greve, até aqui não dá para pressionar que aí estoura”. Então, quando o próximo setor for uberizado, e dominado por um aplicativo, eles terão os gráficos na mão:
“Veja, analisamos os dados, e esse trabalhador aguenta 12 horas por dia, sete dias por semana. Consegue passar o dia inteiro com fome, então você não vai ter gasto nenhum com ele. Mas ele só aguenta seis meses. Depois, você bloqueia ele e coloca carne nova, que vai aguentar outros seis meses. Mas se você quiser, outra opção é colocar os trabalhadores em jornadas de 10 horas por dia, dar almoço para eles, que vão aguentar um ano, um ano e meio. Mas depois também vão estourar – e você vai ter que renovar. O segredo é renovar a safra da superexploração antes que ela exploda e vire uma greve, um motim ou um caos social, e colocar sempre carne nova, que passará pelo que outros já passaram. Não pode deixar a bomba explodir em sua mão”.
Para mim, essa é a grande distopia. Querem responder à grande pergunta: até onde o trabalhador aguenta ser explorado? Sei que posso parecer louco, feito aqueles caras que falam de terra plana. Mas é isso. Olha a realidade que a gente vive. Eu ligo meu aplicativo para trabalhar e eles sabem a rua onde eu estou, o que faço, o que deixo de fazer. Eles veem 300 motos juntas na Praça da República, e falam: “é greve, bloqueia esses caras”. Sabiam que no “breque dos apps” um monte de motoboys tomou multas de seis mil reais por obstrução de via pública? É o preço da moto, mano. Será que não teve um vereador, deputado ou outro alguém que bonificou esses policiais por essas multas? Queriam mexer no nosso bolso – e mexeram. Por isso, a luta antiuberização não existe se não for anticapitalista – assim como a antirracista e antimachista. Na verdade, eu não acredito em nenhuma luta que não seja anticapitalista. Por que enquanto eles controlam a gente pelo bolso fica difícil conseguir travar lutas com saúde.
É como nas redes sociais. Você acha que discurso bonito ganha de mamadeira de piroca? A esquerda tem uma coisa de que não pode usar os mesmos artifícios deles, como criar fake news, e deve ir pelo caminho da verdade. Mas eles têm mil robôs para contar mil mentiras – e impulsionar isso de forma quilométrica. O que acho é que temos que voltar para a realidade porque é como se a gente fosse um bicho terrestre querendo lutar no mar contra tubarões: vamos passar a vida inteiro sendo jantados. Os caras falam: “a esquerda tem que aprender a utilizar as redes sociais”. Mas vai conseguir fazer o que eles fazem, com as mesmas armas… Precisamos rever o caminho.
Eu sou um cara que tem dificuldade para colocar 1kg de filé de fígado na minha geladeira. Sou o pai da Raquel, esposo da Jéssica, filho da Luciene e do Roberto, neto da Alzira. É isso o que sou na vida real: um motoboy e entregador que não aguentou mais ser explorado e explodiu. Muitos enxergam isso; outros, até entregadores como eu, acham que sou um ator contratado pelo Intercept para introduzir ideias comunistas nas motos, que sou financiado pelo PT… Tem como ganhar desses discursos de mamadeira de piroca? Que discurso bonito eu possa fazer? Eu preciso que os entregadores cheguem nessa live, mas o algoritmo não deixa – eles vão parar no clipe de funk, no vídeo engraçado, no meme. Já não é mais aquela história de porta de fábrica, de juntar os companheiros na hora do almoço para conversar. E tento, mas não consigo chegar neles…
Mas meu discurso não é antitecnologia, mas de saber quem está operando as máquinas, lá no Vale do Silício. Eu tenho 40 mil seguidores no Twitter, mas precisava mesmo era de 40 mil entregadores nas ruas. Faço reuniões com o Japão, o Camboja, a China, a Itália, a Espanha, a Inglaterra, a América Latina toda, o Canadá, os EUA, mas não consigo me comunicar com meus companheiros aqui no Brasil. Enquanto a gente não tiver o controle dessa tecnologia, precisamos repensar em como estamos utilizando ela.
Hoje, parece mágica, não é? Você aperta um botão e um hambúrguer chega na sua casa. Mas tem alguém pagando aluguel, funcionário, matéria-prima para esse hambúrguer existir; pagando prestação de uma moto para poder entregar ele; pagando a bag para levar ele; arriscando sua vida. Não existe mágica. E isso funciona para tudo: para o pacote de arroz no supermercado, para a camisa que você está vestindo, para a tinta que pintou o fundo aí da sua casa. A gente só quer saber da chegada, mas e os caminhos? Um monte de gente se ferra para o hambúrguer chegar na sua casa – e ninguém questiona o caminho.
Resumindo as ideias: eu não acredito que hashtag vai nos salvar, já aprendi isso. É uma ferramenta bacana pra articular as coisas, mas dependendo, a gente passa mais a ser utilizado do que utiliza essa ferramenta. A gente precisa ter muito cuidado. Outra coisa: não acho que o caminho é fazer uma luta pelos entregadores; o caminho é a luta pela classe trabalhadora. Agora vou dar uma de comunista: é igual Cuba. Se a América Latina inteira fosse socialista, Cuba estaria melhor, não estaria? Então melhorar só a vida dos entregadores eu acho pouco. Precisa ser todo o mundo. Olha os corretores de imóveis: os caras trabalham de graça, passam seis meses panfletando na rua, não vendem um apartamento, e depois desistem. Os companheiros dos Correios podem virar os próximos entregadores. Isso está acontecendo com todo o mundo, mano. Não é só com quem está com a caixa nas costas. Isso vai chegar em você. Se você acha que não, está ferrado, meu truta. Está se formando um tsunami. Saia da costa e vamos tentar lutar para não deixar isso aí engolir a gente.
Texto elaborado a partir da transcrição e edição da participação de Paulo “Galo’ Lima no ciclo de diálogos “O Futuro do Trabalho no Brasil”, realizado por Outras Palavras com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, em setembro do ano passado. Assista ao vídeo: