07 – Lula e o consumo popular
O dilema juro-inflação-desenvolvimento
Mas data houve em que se acabaram
Os tempos duros e sofridos
Pois um dia aqui chegaram
Os capitais dos países amigos
País amigo, desenvolvido
País amigo, país amigo
Amigo do subdesenvolvido
País amigo, país amigo
E os nossos amigos americanos
Com muita fé, com muita fé
Nos deram dinheiro e nós plantamos
Só café, só café
É muita terra em que se plantando tudo dá
Mas eles resolveram que nós deveríamos plantar
Só café, só café.
Trecho da música “Canção do Subdesenvolvido”, de 1962, composta por Carlos Lyra e Francisco de Assis.
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À sua maneira, o ex-presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, tocou num velho dilema da economia brasileira — a possível contradição entre inflação e desenvolvimento. O assunto foi a elevação mundial do preço dos alimentos, segundo ele uma ”inflação boa” porque ”convoca” os países a produzir mais e atender à demanda por alimentos no mundo. Lula disse também que a alta dos alimentos não precisa ser necessariamente combatida com a alta dos juros.
A fala do presidente foi oportuna. Muita gente no Brasil ainda vê o consumo como um gesto pouco nobre. Lula é um entusiasta do consumo. Claro que para um país como o Brasil o ganho mais visível e imediato que a égide do consumo tem a oferecer é mesmo a elevação do nível de conforto material. Consumir mais e melhor significa também fruir arte, absorver informação, ter acesso ao patrimônio cultural da humanidade. Ou seja: obter satisfações que transcendem à mera necessidade imedita.
Por que há tantas reservas em relação ao consumo de massas no Brasil? É que o consumo popular funciona como o estopim econômico de transformações sociais. Para o povo, ele é bem-vindo também por isso. As travas brasileiras em relação ao consumo estão no fato de que ele sempre foi privilégio de poucos. A arquitetura social brasileira é caracterizada por políticas públicas tímidas e insuficientes. A força da ideologia liberal à brasileira, com traços feudais e escravocratas, é a causa dessa timidez — ou insensibilidade social.
Uma das alegações dos liberais é a de que a inflação em alta impedia uma ação social mais vigorosa. Como distribuir os frutos de um desenvolvimento não realizado? Primeiro era preciso fazer o bolo crescer para só depois distribuí-lo. No início dos anos 1960, essa fantasia ganhou conotação ainda mais autoritária. Os economistas que assumiram o controle depois do golpe militar de 1964 chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio” — ou produto de fantasia; devaneio, utopia.
A política econômica da ”era militar” chegou à crise dos anos 1980, que levou à guinada ”ortodoxa” da linha de condução da economia quando o país ingressou na “era neoliberal”. Foi pelo caminho da prioridade à política de “estabilização monetária” em detrimento da postura desenvolvimentista, iniciado no governo do presidente Fernando Collor de Mello, que o Brasil chegou ao Plano Real e ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Naquela campanha, FHC brandiu a ”estabilidade” como se fosse a sua grande contribuição à humanidade.
Uma inflação de 1,75% em setembro de 1994 e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante.
Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC. Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma ”reforma” de cunho liberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas.
Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo. Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos — como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as ”conquistas” da ”estabilidade” para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego.
Era conversa sobre corda em casa de enforcado, como no provérbio. Mas a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as ”conquistas” da ”estabilidade” e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.
Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.
O projeto neoliberal reavaliou o rumo da campanha, enfatizou os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC — as questões sociais — e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC. Quando ele se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de mudança de rumo tacitamente prometida. Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu em 2002 e se reelegeu em 2006 — empunhando as bandeiras das questões sociais.
Ao seguir à risca a receita neoliberal, os golpistas de 2016 reptem aquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, que partiu o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor para ilustrar a convicção e o sectarismo monetarista do que a teoria do bolo — seus defensores têm o ar de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era FHC” vimos isso com nitidez.
Dizia-se, com a habitual obviedade para encaixar um sofisma, que o bolo (a economia nacional) era um só e tinha de ser dividido em partes iguais. Não adiantava querer aumentar as partes enquanto o bolo fosse o mesmo. A análise monetária-culinária que faziam tinha como mandamento principal a contenção da inflação, sacrificando o desenvolvimento. E era ilustrada com um exemplo matemático — diziam que o bolo tem 100 unidades, logo deve ser dividido em partes que somam 100 ao final. Esta foi, por exemplo, a propaganda da “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que blindou o superávit primário. Um engodo, está claro.
A teoria era a de que quando são destinadas 80 unidades para consumo e 40 para investimentos, o resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na “era FHC” — o então presidente da República chegou a dizer que a “Marcha dos 100 mil”, que inundou Brasília com um mar de gente para protestar contra a sua política econômica, era “ a marcha dos sem rumo”. Qual seria a alternativa? Segundo eles não havia, a não ser plantar “só café, só café” — como na letra da música que citei acima. Ou seja: produzir superávit primário.
Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento de um povo que habita uma região cheia de riquezas naturais. A política econômica de um país não pode ser determinada por simples conceitos monetários. Esta auto-suficiência dos neoliberais esclarece muitas coisas dos problemas sociais e econômicos do Brasil. E suscita novas indagações sobre a atualidade do dilema inflação e desenvolvimento — as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda não lhe trouxe solução.
Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição da existência deste diagnóstico é o erro fundamental dos neoliberais — que tratam política econômica e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente do BC na ”era FHC”, Gustavo Franco, certa vez afirmou, repetindo Roberto Campos, que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico mas emocional e religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nos governos Lula e Dilma.
Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira sob a orientação desta teoria monetária. Já é alguma coisa saber disso. E já se sabe não apenas que esta é a grande questão como também que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência dos neoliberais na ”era FHC”, quando todo o tempo foram afirmadas teses ditas únicas para a economia brasileira que chegaram a resultados melancólicos.
Com o desmentido de promessas feitas em tom de profecias, cresceram as evidências de que o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores dessa política na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente, que empolgaram-se e sectarizaram-se na defesa de teses ”ortodoxas” — talvez por supor que estavam no exercício de um poder absoluto —, foram repudiados por todos os que não rezavam pela cartilha neoliberal. Eles incorreram na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e por isso cantavam para que o sol nascesse.
Desse modo, incorreram em um erro de análise econômica, decorrente de um erro muito maior de análise política — passaram a ser elogiados por todos que apoiaram a ”era FHC” e criticados pelos apoiadores do governo Lula. A saída de Palocci do governo arejou o ambiente na equipe econômica, mas a economia do país continuou dependente do conservadorismo.
O pensamento progressista latino-americano há tempos discute os obstáculos impostos à industrialização do sub-continente. A Cepal foi a referência maior nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos.
Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu parque industrial, mas manteve largos segmentos inteiramente à margem do processo produtivo, sem acesso às benesses do crescimento. Com poucos governos de visão social, o Estado esteve por muito tempo ausente não apenas da tarefa de distribuir renda mas também da de habilitar toda a sociedade a participar da dinâmica produtiva.
A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”, o assédio institucionalizado de setores privilegiados aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê refém do privado.