Entrevista Frei Betto
No primeiro momento, a Igreja Católica e outras organizações religiosas apoiaram o golpe militar de 1964. Alguns religiosos, como o então cardeal de São Paulo d. Agnelo Rossi, chegaram a encobrir torturas e outras atrocidades. Foi só com o passar do tempo, o surgimento de denúncias rotineiras sobre desrespeitos aos direitos humanos e a caracterização cada vez mais clara do regime como uma ditadura, que a Igreja mudou de lado e passou a ser um dos pilares na defesa da democracia. A opinião é do escritor Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, testemunha e personagem desta história.
Durante a conversa com o iG na sala de música do convento dos dominicanos, um oásis de árvores e passarinhos encravado no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, Frei Betto disse que a situação mudou a partir da intervenção direta do papa Paulo VI, que substituiu d. Rossi por d. Paulo Evaristo Arns. “A partir de d. Paulo mudou tudo”, afirmou.
IG – Em vários momentos a Igreja Católica e outras organizações religiosas ajudaram no combate à ditadura militar. Havia uma articulação entre elas?
Frei Betto – Na verdade, quando houve o golpe em 1964 a Igreja Católica, através da CNBB, apoiou agradecendo a Nossa Senhora Aparecida ter livrado o Brasil da ameaça comunista. Ocorre que setores da Igreja, em especial a JUC (Juventude Universitária Católica) da qual eu era dirigente e a JEC (Juventude Estudantil Católica), que faziam parte da Ação Católica, estavam muito identificados com a esquerda e contra a ditadura. Eles já haviam inclusive dado origem a um dos grupos de esquerda duramente reprimidos, a Ação Popular, da qual Betinho (o sociólogo Herbert Souza, morto em 1997) foi um dos fundadores. Então a repressão, que no início ficou muito confortável com o apoio da CNBB, passou a achar que a Igreja fazia jogo duplo. Porque ela fazia um discurso de apoio aos militares, mas na prática estava contra. Para vocês terem uma ideia, nós da JUC e JEC morávamos juntos no Rio de Janeiro e fomos presos no dia 6 de junho de 1964, isso tudo eu descrevo no livro “Batismo de Sangue”. E porque fomos presos? Havíamos feito algum movimento contra a ditadura? Não. Fomos presos na chamada noite do arrastão da Ação Popular. Para o Cenimar (órgão de inteligência da Marinha), Ação Católica e Ação Popular eram a mesma coisa. Ficamos 15 dias presos. Não houve processo nem nada.
iG – Como a Igreja reagiu a isso?
FB – Aí começou aquilo que aos olhos da ditadura era jogo duplo e com atitudes de bispos progressistas cada vez mais críticos à repressão na medida em que ela vai crescendo. A partir daí muitos bispos, com destaque para a atuação de d. Helder Câmara, começam a defender as vítimas e vai se alargando o fosso entre a Igreja Católica e a ditadura. Isso também acontecia em menor escala com outras Igrejas. E o caldo entornou com a prisão nossa, dos dominicanos, em 1969, e o assassinato do padre Henrique Pereira Neto, da pastoral da juventude do Recife. Ele foi torturado, assassinado e jogado no campus universitário. E nós torturados, Frei Tito massacrado, depois veio a morrer em consequência disso.
iG – O apoio continuou quando surgiram as denúncias de tortura?
FB – Tínhamos algumas figuras de proeminência na Igreja Católica como o cardeal Vicente Scherer no Rio Grande do Sul e o cardeal Agnelo Rossi aqui em São Paulo do lado da ditadura, dizendo que não havia tortura. Tanto que quando o Rossi foi nos visitar no Dops ele nos viu todos quebrados, nós dissemos que havíamos sido torturados, o delegado disse “não eminência, eles caíram da escada” e o Rossi saiu do Dops e disse à imprensa que não houve tortura.
iG – Houve participação do Vaticano na mudança de postura da Igreja brasileira?
FB – Roma nos apoiou na figura do o cardeal Agostinho Casarolli, segundo na hierarquia do Vaticano. Portanto, o papa Paulo VI nos apoiou. O governo geral dos dominicanos em Roma também nos apoiou e quando o papa ficou sabendo do episódio no Dops decidiu tirar o d. Rossi de São Paulo com aquele esquema que a Igreja usa de promover para remover. O papa pediu para o cardeal Rossi ir a Roma e então aconteceu um episódio folclórico. O Rossi ficou hospedado no mesmo lugar onde sempre ficam os brasileiros, chamado Pio Brasileiro, e celebrou uma missa dizendo no sermão que no Brasil não havia tortura, que tudo era uma campanha comunista. Em seguida, depois do sermão, na oração dos fiéis, os seminaristas brasileiros começaram a dizer “rezemos por fulano, assassinado pela polícia nas ruas de São Paulo segundo o ‘Observatório Romano’, rezemos pela sicrana que foi muito torturada segundo a ‘Rádio Vaticana’”, etc. Eles acabaram com o Rossi, pois as fontes eram os próprios veículos de imprensa do Vaticano. Quando Rossi voltou para São Paulo na chegada ao aeroporto foi comunicado por jornalistas sobre sua demissão e que d. Paulo Evaristo Arns, que era auxiliar dele, era o novo arcebispo. E a partir de d. Paulo mudou tudo.
iG – As tensões diminuíram?
FB – Não. Se agravaram porque d. Paulo bateu de frente com a ditadura todo o tempo. Foi ele quem fundou o grupo Clamor, a Comissão de Justiça e Paz, o Brasil Nunca Mais. Uma série de instrumentos que ele foi criando para defesa dos direitos humanos. E assim a Igreja foi se afastando até o ponto de emitir notas contra a ditadura.
iG – A preocupação com os direitos humanos ficou acima das ideologias políticas?
FB – Tinha um padre da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) que nos visitava e não acreditava na existência de tortura até o dia em que viu o Frei Tito chegar do DOI-Codi todo arrebentado. O padre entrou em parafuso porque era um homem honesto.
iG – A ditadura tentou impedir a ação da Igreja?
FB – Proibiram que estrangeiros nos visitassem porque nós, os dominicanos, éramos a caixa de ressonância mais forte na Europa sobre os arbítrios da ditadura. Nós tínhamos a Igreja por trás. Ninguém na esquerda tinha algo parecido. Tanto que nos separaram. Ficamos dois anos como presos políticos e os dois últimos anos como presos comuns. Fomos parar no Carandiru e depois em Presidente Venceslau. Depois da proibição aos estrangeiros o bispo de Lins foi nos visitar no presídio Tiradentes com o cardeal holandês Bernardus Alfrink, um dos mais progressistas da Igreja. Sabendo da proibição aos estrangeiros o bispo falou que o cardeal era seu sacristão. O cardeal então nos entrevistou, anotou tudo, na mesma noite embarcou para a Holanda e ao chegar a Amsterdam toda a imprensa já estava convocada para uma coletiva na qual foi tudo denunciado. E assim a posição das igrejas foi mudando até chegar ao ápice com o livro Tortura Nunca Mais (com mais de mil relatos colhidos clandestinamente entre 1979 e 1985 com apoio de d. Paulo, o rabino judeu Henry Sobel e o pastor protestante Jamie Wright).
iG – O cerco maior foi em torno dos dominicanos?
FB – Não só. Temos o caso dos padres franceses, a tentativa de assassinar d. Pedro Casaldáliga e aí eles mataram um outro padre jesuíta lá em Rio Bonito. Havia uma festa, dom Pedro estava com roupas normais e o padre vestido de clérigo. Acharam que o padre era o bispo e o mataram. Teve muitos outros episódios que foram tão fortes quanto o nosso.
iG – Havia algum respeito dos militares pelo fato de vocês serem da Igreja?
FB – Não. De jeito nenhum. Ao contrário. Por que o Frei Tito morreu em função da tortura? Nossa prisão foi igual à dos demais. A repercussão foi muito grande. Saiu na imprensa do mundo todo. O que aconteceu foi que quando a ditadura se deu conta da repercussão ela percebeu que não tinha sustança para justificar a violência com que fomos presos e decidiu que nós tínhamos que assinar um documento assumindo que havíamos participado de operações armadas. O primeiro a ser retirado do presídio Tiradentes para assinar o documento foi o Frei Tito. Ele não assinou, foi três dias torturado dia e noite até o ponto em que ou ele cedia ou morria. Então ele cortou o pulso com uma lata e com isso impediu que os demais passassem pela mesma coisa. Mas a partir daí ele ficou todo quebrado psicologicamente. Isso teve uma repercussão imensa. A revista Look deu ao Frei Tito o prêmio de melhor matéria do ano de 1971.
iG – O papel da Igreja na luta contra a ditadura no Brasil estava dentro do contexto da América Latina?
FB – Sim. As histórias se repetem em alguns países. Mas na Argentina, por exemplo, foi o contrário. Lá a Igreja apoiou oficialmente a ditadura. Embora padres e bispos tenham ido contra, a conferência episcopal apoiou a ditadura até o fim ao ponto de nomear capelães que participaram de sessões de tortura e dos voos da morte. Mas em geral a Igreja da América Latina foi contra as ditaduras.
iG – A Igreja ajudava a conscientizar os fiéis sobre as arbitrariedades do regime?
FB – No primeiro momento, a Igreja foi totalmente a favor da ditadura. Chegaram a permitir a vinda do padre Patrick Peyton, americano, que era agente da CIA e promoveu aquelas marchas da família com Deus pela liberdade usando a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Depois a Igreja foi recuando e se tornando crítica. Aqui na nossa igreja, por exemplo, a missa aos domingos lotava porque o sermão feito pelo Frei Chico era sempre crítico à ditadura. Ele tinha o cuidado de mimeografar para distribuir na saída. Tinha gente até na calçada de uma igreja em que cabem 800 pessoas sentadas. Não era por fé. Ali era um espaço onde se respirava liberdade. Enquanto isso ocorria um outro fenômeno que eram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) crescendo por baixo, sem chamar atenção da repressão. E elas são a sementeira de todo movimento social que veio depois. Hoje é difícil encontrar um político de extração popular que não tenha origem nas CEBs. O Lula é uma exceção.
Fonte: Portal Ig