Quem quiser conhecer em detalhes as origens da crise e da “degringolada” russa, não pode deixar de ler O grande salto atrás: reportagem numa Rússia de ruínas e esperança do jornalista francês Henri Alleg. Veterano comunista, ex-diretor do diário argelino Alger Republicain durante a guerra de libertação, no final dos anos 1950, e ex-secretário de redação do l'Humanité, Alleg celebrizou-se mundialmente através do livro La Question (A Tortura, na edição brasileira). Nele são narradas em detalhes as bárbaras agressões a que o jornalista foi submetido pela forças de repressão francesas, o que motivou um movimento de solidariedade internacional, liderado entre outros por Jean Paul-Sartre.

Em seu novo trabalho, Alleg percorre um país continente devastado por oito anos de reformas em direção à economia de mercado e pela paralisia do Estado nos anos finais do regime socialista. Com sua linguagem vertiginosa, o livro se inicia com a descrição de uma viagem através da miséria e do abandono atuais das estações de metrô de Moscou, que “já não são mais o que eram, símbolos de uma Revolução vitoriosa e, ao mesmo tempo, das certezas por ela proclamadas”. Nos capítulos seguintes, o autor entrevista diversos personagens dessa imensa tragédia social – aposentados, ex e neocomunistas, banqueiros, jovens, estudantes – e desfia dados estarrecedores (veja os trechos).

Com 60% da população vivendo abaixo da linha de pobreza, Alleg nos conduz às entranhas de uma sociedade à deriva, em que velhos apparatchiks (membros da burocracia comunista) deram as mãos a jovens yuppies e, em aliança com a nata financeira mundial, arrebanharam a preço de banana cerca de 115 mil empresas privatizadas a toque de caixa. Fortunas nasceram da noite para o dia, ao mesmo tempo em que eram desmontadas todas as redes de assistência social que, bem ou mal, atendiam a população com escolas, hospitais e remédios totalmente gratuitos. A criminalidade e prostituição proliferaram entre uma nação anestesiada, durante os últimos anos do governo de Mikhail Gorbachev, por doses industriais de propaganda exaltando a prosperidade capitalista. Alleg constata, espantado, que para muitos russos, os Estados Unidos eram um paraíso de democracia e George Bush, seu paladino.

Implacável com os atuais dirigentes do país, o autor destila sua antipatia também contra os últimos dirigentes do regime comunista, em especial Nikita Kruschev, Leonid Brejnev e Mikhail Gorbachev. Segundo o livro, nas últimas décadas, floresceu uma camada de dirigentes “nos quais crescia o “espírito de funcionário”, ao invés do fervor e da convicção militantes dos primeiros anos da revolução. Alleg combate também as visões simplistas que tendem a ver a gênese de todos os males russos na dupla Stalin/Béria, como se pudesse ser debitada à “maldade pessoal” de algum dirigente os descaminhos pelos quais se meteu a URSS.

O jornalista não cai, ainda, na negação de todos os avanços obtidos desde outubro de 1917. Narra, sinteticamente, o sofrido percurso da União Soviética, desde as invasões estrangeiras – com destaque para a campanha nazista – e as sabotagens que os países que a compunham viveram a partir do início dos anos 1920, até a dureza da guerra fria, quando uma quarta parte do orçamento total da URSS teve de ser desviado para a indústria bélica. Não é de se estranhar que com tal clima de apreensão e contenção de recursos, a paranóia florescesse. A burocratização e a ausência de democracia no partido e nos países, arrebentaram por dentro as texturas sociais de uma região com enormes diferenças internas. Destruído o partido, não havia naquelas sociedades outras instituições que sustentassem seu complexo edifício social.

Vale procurar a edição portuguesa, que pode ser encomendada à Editora Anita Garibaldi por telefone (0xx11 289 1331) ou via internet ([email protected])

Trechos

“Sabedores das possibilidades que algumas jogadas financeiras lhes proporcionam, certos espertalhões propõem aos aposentados sem filhos a venda antecipada da casa que possuem, contra uma renda vitalícia: “Assinamos o contrato. Eu entrego todos os meses, até seu falecimento, uma renda que triplicará ou quadruplicará sua pensão. (…) Quando o Sr. falecer, eu serei o herdeiro da casa” (…) Sem o saber, estes aposentados assinaram sua sentença de morte. Um possível acidente resolve o problema
(…)
Numa conferência de imprensa, dada na Câmara Municipal de Moscou, ouvi um dos candidatos à Duma ( parlamento) dizer que, para ele, George Bush era a própria democracia em carne e osso.
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Segundo pesquisas realizadas em 1991, dois terços dos cidadãos diziam-se satisfeitos com o malogro do “golpe”, porque pensavam que se ele tivesse tido êxito, a situação teria piorado. Passado um ano, apenas um terço dos inquiridos mantinha essa posição.
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Um russo se pergunta “Seremos hoje mais livres? (…) Atualmente dizem-nos: podem ir para onde quiserem, para a Europa ou América, antigamente não podiam. Essa liberdade me dá vontade de rir. Excetuando-se os novos ricos, quem poderá gozá-la?”
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Sobre o ataque ao parlamento, em 4 de outubro de 1993. Sem qualquer intimação prévia, foi dada a ordem de atacar. Choveram projéteis de artilharia sobre o Parlamento: os canhões metralharam, um após outro, todos os andares. Uma carnificina. (…) O correspondente do Le Monde em Moscou (…) fala de 1500 mortos. Mas segundo outras contagens, dadas como mais ou menos oficiais, havia “apenas 150 mortos e 600 feridos”. (…) Não houve no Ocidente uma única voz oficial que se fizesse ouvir em condenação à matança e ao ato de força. Pelo contrário: Washington, Paris, Bonn, Londres congratularam Ieltsin por ter “salvo a liberdade”.