O trabalho hercúleo consistiu na limpeza das imundícies milenares das estrebarias que simbolizam o mundo das animalidades, para que o sol do espírito pudesse manifestar-se na Terra e propiciar o advento da Idade de Ouro vaticinada pelos profetas, videntes e pitonisas de todos os tempos. Assim, somente assim, poderiam os cavalos do carro de ouro do Sol cavalgar a Terra, conduzindo o Senhor da Luz na Mercavah, o carro de fogo. Foram doze os trabalhos de Hércules em relação com as doze casas zodiacais pelas quais passou, completando seu ciclo astrológico ao Sol. Hércules, ou Heracles, o deus solar grego, passou pelas provas iniciáticas marcado pelo simbolismo que bem expressaria a difícil caminhada do governo Lula no País que bem seria aquele lugar referido com insistência nas lendas da Antigüidade: um país maravilhoso, na região donde o Sol se põe, isto é, no Ocidente.

Os papiros egípcios citam-no como o Amenti, ou melhor, Amen-Ti, o País Oculto, e determinado lugar dessa mansão, maravilhosa, a montanha do ocidente, a Mansão das Almas osirificadas, justamente onde iam viver aqueles que, iniciados nos mistérios, imortalizavam-se e atravessavam o umbral Ro-sta, que dava para a sala de Maat, a deusa da Verdade.

Após realizar sua última viagem internacional como Presidente para receber mais um título de “doutor honoris causa”, este sociólogo que vendeu a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e que negou tudo o que escreveu antes (para que sua obra, que agora pretende “atualizar” não fosse atirada à vala comum das suas proezas presidenciais), foi pródigo no patrocínio de um retrocesso democrático que varreu da Constituição de 1988 uma boa parte das conquistas nacionais e sociais posteriores ao fim do regime militar; incontido na edição de medidas provisórias (MP’s), das quais abusou como nenhum antecessor, desmoralizando o Congresso Nacional com seu balcão de negócios e submetendo o Judiciário (tendo nomeado seu “líder” no Supremo Tribunal Federal – STF, e Tribunal Superior Eleitoral – TSE, Nelson Jobim, entre outros. Entreguista extremado, promoveu previamente às privatizações, intensa campanha contra as empresas públicas e abriu lugar cativo em seu gabinete palaciano para o Fundo Monetário Internacional – FMI); fervoroso em legislar contra os trabalhadores, a esses dedicou milhares de ataques letais aos seus direitos legais ou a pura e direta repressão – viva na memória de petroleiros, caminhoneiros, servidores públicos, entre inúmeras categorias.

FHC sai da Presidência com uma nódoa irreparável, determinada por seu inconfundível compromisso com o berço conservador, manchado pelo desprezo ao suor e ao sacrifício do povo humilde, a quem humilhou, e pelas reverências aos poderosos, a quem bajulou e elevou. Ele se despede do poder depois de uma orgia inédita em nossa História, na qual os convidados foram os rentistas internacionais de toda espécie e a nata dos exploradores. Estes saem da esbórnia com um lucro fantástico – fruto da sangria promovida contra a soberania nacional e contra o trabalho neste País. Com isso, FHC certamente avalizou seu passaporte para uma sinistra posteridade.

Camelô ou caixeiro viajante

Fernando Henrique Cardoso entrará para a História do Brasil como o presidente que mais viajou para o exterior, encerrando seu período de oito anos com praticamente um ano a passeio pelo mundo, e a precípua missão de vender o País nos centros hegemônicos da economia internacional. FHC voou 88 vezes em 121 viagens oficiais a 44 países, além de três visitas à sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, numa média anual de viagens 2,7 vezes superior à do papa João Paulo II.
Oficialmente, a “diplomacia presidencial” foi qualificada como “instrumento que favoreceu muito o acesso a novos mercados, a conquista de investimentos e a conquista de mais espaço para o Brasil nas decisões internacionais” pelo embaixador Eduardo Santos, assessor especial da Presidência da República para relações internacionais. Mas a situação legada para o sucessor está longe de facultar-lhe um panorama tão favorável.

No exterior, a imagem do Brasil corresponde à das repúblicas da corrupção latino-americana, com suas elites carcomidas pela degradação moral. FHC, com seus títulos e pompa de estadista, poderia muito bem ter o destino de parceiros como Alberto Fujimori, a quem agraciou com elevadas honrarias nacionais, ou de outros elementos da estirpe de Domingo Cavallo, que terminou encarcerado pelo crime formal de contrabando. Na verdade, esses e diversos outros cometeram crimes contra a economia e contra os povos dos seus países – imputação da qual FHC não está livre, de acordo com os diversos processos criminais que correm na Justiça contra ele.

Denúncias de corrupção campearam livres e impunes em seus governos. Desde o escândalo da licitação do projeto Sivam, passando pela compra de votos para a aprovação da Emenda da reeleição, até o episódio das privatizações – e do sistema de telecomunicações brasileiro em particular –, Fernando Henrique teve sempre um fiel escudeiro a comprometê-lo pelos laços de intimidade (embaixador Júlio César, Sérgio Motta, Eduardo Jorge Caldas Pereira, Ricardo Sérgio de Oliveira, entre diversos outros). Entretanto, passeou sobranceiro sobre todas as dezenas de denúncias e, no limiar de seu segundo mandato, tenta sair ileso: busca o apoio para mais uma saída negociada nesta jovem e contaminada República, buscando comprometer o vencedor com seu passado ambíguo e, de quebra, articula um cargo internacional na ONU que o mantenha olimpicamente acima das punições reservadas ao comum dos mortais.

A corrupção deslavada em seus governos não é apenas mais um atestado secular do baixo padrão moral das elites brasileiras – de onde recebeu um legado que se empenhou em ampliar. Está umbilicalmente articulada à moderna aliança dessas elites reunidas num pacto conservador para elegê-lo em 1994 e em 1998.

Fundamentalmente as mesmas forças que ofereceram sustentação à ditadura militar. Ao sociólogo e professor da USP – ele próprio um rebento bem nascido dessas elites – coube ser festejado, promover a festa e patrocinar um dos maiores retrocessos republicanos quanto às conquistas democráticas no Brasil. Políticos conservadores que resistiram ou relutaram ante o movimento pela democratização, aliados e beneficiários da ditadura, foram plenamente restaurados no comando da República pelo pacto neoliberal.

O desmonte nacional

Não tão milenar quanto às referidas imundícies das cavalariças de Áugias, a ação do presidente Fernando Henrique Cardoso pode ser estimada pela extensão e profundidade dos estragos que produziu em apenas oito anos no coroamento dos cinco séculos de gestão das elites brasileiras sobre um país maravilhoso, continental – que, ao contrário de muitos países do mundo ocidental, vê o sol quase todo dia.

As reformas do Capítulo da Ordem Econômica que buscou aprovar desde o primeiro dia de seu primeiro mandato, em 1995, incorporadas à Constituição mediante o jogo fisiológico com os partidos conservadores e a corrupção ostensiva dos lobistas – que trafegavam fagueiros pelo Parlamento –, inauguraram o processo de privatizações e desnacionalização da economia brasileira. Segundo o relatório do Tribunal de Contas da União, TCU-2001, entre 1991 e 2000 foram arrecadados US$ 82 bilhões com as privatizações. Desse total, US$ 28 bilhões oriundos das privatizações estaduais; US$ 27 bilhões das telecomunicações; US$ 5,6 bilhões do setor siderúrgico; US$ 4,0 milhões do setor de petróleo e gás; US$ 3,9 milhões do setor elétrico; US$ 3,8 milhões do setor financeiro; US$ 3,3 milhões do setor de mineração; US$ 2,7 milhões do setor petroquímico; US$ 1,7 milhão do setor ferroviário; US$ 2,4 milhões dos demais setores – fertilizantes e portuário. Do total, US$ 11,113 bilhões foram pagos em “moedas podres” e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ainda ofereceu substanciais atrativos para esses “investidores”.

Na entrada de apenas R$ 8,8 milhões da privatização das teles, praticamente a metade foi financiada pelo BNDES. Dois anos e meio antes, foram investidos na infraestrutura do setor, nada menos que R$ 21 bilhões em recursos públicos. A CVRD, com 50 anos de investimentos produtivos e de infraestrutura (em portos, navios, estradas de ferro, locomotivas, e todo tipo de maquinarias e equipamentos) foi vendida por míseros R$ 3,13 bilhões, com seus ativos e jazidas minerais imensuráveis.

O massacre trabalhista

No discurso predador de FHC e de sua equipe neoliberal, as privatizações iriam resolver problemas da Saúde e da Educação, o problema da dívida pública, assegurar a estabilidade da economia. Nada disso ocorreu. Os índices inflacionários voltaram a crescer e o País perdeu ritmo de crescimento econômico.

Essas medidas caminharam pari passu ao corte dos direitos dos trabalhadores secundadas pelo ajuste fiscal – que determinou o congelamento dos salários dos servidores federais, o corte de investimentos na área social e de investimentos públicos, que levaram a drásticas conseqüências – como a da crise energética do mais apreciado sistema hidrelétrico do mundo.

O dispositivo da MP, sucedâneo do Decreto-Lei – arma legislativa do regime militar – foi o maior símbolo do autoritarismo da era FHC. Desde a promulgação da Constituição de 1988 foram editadas e reeditadas 6.121 MP’s, entre edições e reedições, das quais 5.314 assinadas pelo presidente FHC. Além de atropelar o Parlamento, essa excrescência palaciana servia como “cavalo de Tróia” para os maiores disparates e comportava freqüentemente ataques às instituições de desenvolvimento regional e aos direitos dos trabalhadores. Já no início de 1995, foram decretados via MP o fim da política salarial e uma certa “participação” dos trabalhadores nos lucros e resultados das empresas. Um ano depois, 40% das categorias não conseguiam sequer a reposição da inflação passada, e muito menos quaisquer participações em lucros. Em 1998, no final de seu primeiro mandato, FHC edita outra MP letal para os trabalhadores: a pretexto de defendê-los, apresenta como “alternativa à demissão” a suspensão temporária do contrato de trabalho, facultando às empresas o afastamento por cinco meses, com a prerrogativa de promover ou não a requalificação profissional do empregado suspenso.

Mas esse Presidente não poderá ser acusado de traição ao País e ao seu povo apenas na solidão de seu gabinete. No mesmo ano, o rolo compressor de sua base parlamentar funcionou na medida certa para facilitar a vida das empresas contra a estabilidade dos seus empregados, a pretexto de facilitar a abertura de vagas com menos encargos. A Lei 9.601/98 admitiu a demissão sem pagamento da rescisão contratual, com desconto de 50% nas contribuições destinadas ao sistema “S”, pagando somente 2% mensais de FGTS. Noutra situação, a mesma Lei foi articulada à MP 1.709/98 para a elevação do prazo de compensação do banco de horas – primeiro para seis meses, depois para um ano. Assim, as empresas poderiam elastecer ou reduzir a jornada de trabalho, adaptando a carga horária ao seu ritmo de produção. No ano 2000, a Lei 8.959/00 nasceu para eliminar a Justiça do Trabalho dos impasses entre patrões e empregados, provocando uma redução para apenas 60% dos direitos recebidos nas tais comissões de conciliação prévia. Mas FHC não conseguiu completar sua obra, apesar dos esforços de sua base parlamentar: o desmonte da CLT não chegou ao seu termo no Congresso Nacional.

Presidente inesquecível

Conspirando contra o Brasil nessa linha do tempo e no espaço aéreo mundial, o presidente FHC buscou completar a inglória tarefa de torná-lo prisioneiro das teias do capital financeiro internacional, sob o discurso de assegurar uma inflação sob controle, o ajuste das contas públicas e a estabilidade econômica. Na verdade, conduziu ao desmonte da economia e do Estado brasileiro e à instabilidade de uma imensa evasão de divisas, ao sabor dos juros mais elevados do mundo e das flutuações da moeda brasileira. A instabilidade apenas cresceu quando os proprietários do capital volátil, conhecidos no mercado como “investidores” passaram a desconfiar da capacidade de endividamento do País e da própria continuidade da atual política – uma festa que enriqueceu muitos especuladores. O crescimento acelerado da dívida pública foi secundado pelo atrofiamento da produção no País, visto que o dinheiro caro e a elevada carga tributária, voltada para o cumprimento das metas vinculadas ao superávit primário, passaram a inibir o empresariado. A isso se somaram cortes cada vez mais profundos no Orçamento Geral da União (OGU), impondo mais sacrifícios ao País e ao seu povo, sem que o crescimento da dívida fosse contido.

O Brasil não esquecerá esse presidente, que se manteve fiel à mesma política até o final de seu segundo mandato, posando de democrata e de estadista na transição. Mais do que perversos, seus governos apresentam uma herança de arrepiar, legando uma estreita margem de manobra para o desenvolvimento do País e uma monstruosa dívida para todos os brasileiros. O rombo causado ao Brasil atingiu 1,8% do PIB até junho de 2002, acumulando prejuízos de R$ 25,8 bilhões desde janeiro de 1999, uma fatura que repercute sobre o OGU 2003 – a ser liquidada em repasses do Tesouro ao Banco Central (BC). Apenas em setembro de 2002, o BC perdeu R$ 12 bilhões nas trocas de títulos públicos indexados ao câmbio do dólar.

Essa brutal sangria se avolumou com os prejuízos causados pelas intervenções do BC no mercado para conter a alta do dólar, demonstrando que Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) tornou-se útil apenas para manter sob controle os gastos dos demais poderes, dos estados e municípios. Nessa trajetória de destruição, a dívida líquida do setor público sofreu uma brutal elevação: de R$ 61,7 bilhões em 1994, passou a 815,131 bilhões (63,9% do PIB) em setembro de 2002, na encruzilhada das taxas de juros e da crise cambial, avançando para a casa dos R$ 900 bilhões.

No OGU para 2003, os gastos com refinanciamento (R$ 522,2 bilhões), amortização (R$ R$ 60,2 bilhões), juros e encargos (R$ 93,6 bilhões) dessa dívida, significam cerca de 70% num total orçamentário de R$ 1.009,5 trilhão. Restaram, neste ano, na proposta do governo federal, apenas R$ 7,35 bilhões para investimentos no País – uma redução de 33,4% em relação a 2002, que prejudica todas as unidades da federação.

FHC atuou intensamente contra o povo brasileiro ao longo desses oito anos. Seus vetos à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO, que serve de base para a elaboração do OGU), somente de 2003 – a herança imediata para o seu sucessor – atingiram em cheio as rubricas sociais, em especial a saúde pública, os trabalhadores, o emprego e a renda nacional. Foram 12 vetos à LDO, inspirados pelo ajuste fiscal do FMI, inclusive com o corte de R$ 5 bilhões da reserva técnica criada para um aumento de 10% no salário mínimo; de uma Emenda que restabelece os recursos mínimos para a Saúde de acordo com a Constituição; de R$ 6 bilhões para a Saúde até 2004; de um dispositivo da LDO que determinava a destinação de 30% dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para as micro, pequenas e médias empresas, via BNDES, destinada à dinamização da economia.

Pesadelo Real

O Plano Real foi a última iniciativa, mais prolongada e desastrosa entre as cinco voltadas para o combate à inflação, seguindo-se aos planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor. As metas explícitas falavam em estabilizar a economia sem o congelamento de preços e salários, em conter o déficit público com ajuste fiscal e privatizações, na elevação das taxas de juros para conter o consumo e atrair capitais estrangeiros, em abrir a economia para o mercado comercial exterior, em estabilizar os preços e aumentar a competitividade dos produtos brasileiros. Enfim, as premissas do Consenso de Washington aplicadas à globalização neoliberal. A Balança Comercial, que em 1994 apresentava desempenho positivo de US$ 10.466 bilhões, em 1997 já se tornava negativa em US$ 6.752 bilhões e, em 2000, mesmo com a desvalorização cambial e a adoção do câmbio flutuante ocorrida em janeiro de 1999, continuou deficitária em US$ 697 milhões.

Nesse ritmo, a produção industrial foi despencando: em 1995, quando o presidente FHC tomou posse pela primeira vez, atingia os 16,95% e foi decaindo: em 1996 para (-) 8,83%; em 1999 para (-) 3,40%. A dívida externa, que foi de US$ 148,3 bilhões em 1994, alcançou US$ 240 bilhões em abril de 2002. Mais vulnerabilidade decorreu dessa situação, ampliando-se a dependência de capitais de fora para o fechamento das contas externas. O aumento recente do saldo comercial não melhorou o fluxo dos investimentos – em queda promovida pela onda do risco-país nos países emergentes. A gangorra financeira se encorpou mais no recente período eleitoral, com o abreviamento ou vencimento de títulos da dívida brasileira, a elevação do risco-país e da especulação com o dólar. Na agonia do segundo mandato do presidente FHC, o Brasil precisaria de uma cifra de quase US$ 47 bilhões para fechar suas contas sem depender de recursos do FMI.

A crise do Real se acentuou a partir de 1998, implicando num acordo com o FMI que tornou o governo refém de uma cláusula que introduziu na LDO a definição da meta fiscal, instrumento que determina o montante do superávit orçamentário. As metas sociais e econômicas foram submetidas ao resultado financeiro exigido pelo capital financeiro na forma de superávits determinados pela política de arrocho fiscal do Plano Real. Destino: a sustentação de uma dívida galopante com a agiotagem à base da contenção dos gastos públicos – que, em conseqüência, gerou progressiva deficiência dos serviços públicos, privando o País do crescimento e abrindo caminho para a recessão. Nesse ambiente deteriorado, a economia praticamente estagnou, com um crescimento médio de 2,2% entre 1995 e 2002 (neste último ano, o crescimento foi estimado em 1,5%).

Campo minado

O legado de FHC é um campo minado com dispositivos prontos para explodir: os vencimentos de títulos cambiais e sua difícil e onerosa rolagem; a redução da entrada de capitais externos; o limite cada vez mais estreito de decisão sobre o uso das reservas cambiais; os vencimentos da dívida externa; a conta de transações correntes; a balança comercial. A cilada preparada pelo governo neoliberal é lastreada pelo “auxílio” do FMI, em junho de 2002, após a redução do piso das reservas dos US$ 15 bilhões para US$ 5 bilhões, atribuindo recursos da ordem de US$ 22 bilhões que podem gerar uma situação cambial de forte instabilidade para o novo governo. Em junho, essas reservas estavam em US$ 41,9 bilhões, após a liberação da primeira parcela do FMI. Mas, diante da proibição de uso dos recursos vinculados ao acordo nas intervenções do BC no mercado, as reservas internacionais líquidas reduziam-se a US$ 27,8 bilhões, caindo para US$ 23,18 bilhões em setembro deste ano.

Em pleno processo eleitoral eclodiram elevados vencimentos de títulos atrelados ao dólar (resgatáveis em reais). Somente em outubro, equivaliam a R$ 8,542 bilhões, e, até o final de 2002, a R$ 26,507 bilhões, dos quais R$ 12,416 bilhões em novembro. O BC interveio fortemente no mercado cambial e, no início de outubro, as reservas – que em 1995 eram de US$ 51 bilhões – caíram para os US$ 19 bilhões. No ritmo recente dessas perdas (US$ 2,5 bilhões por mês) as reservas estariam no nível dos US$ 11,5 bilhões em dezembro, com a cautela de não atingir o esgotamento ainda no atual governo, de modo a legar sérias dificuldades ao sucessor. Qualquer “nervosismo” do mercado (ou simplesmente um ataque especulativo) que implique numa fuga de capitais maior pode reduzi-las para o patamar mínimo de US$ 5 bilhões, somente nas intervenções voltadas para o financiamento da fuga do capital rentista. Em oposição a isso, a captação de recursos externos até setembro de 2002 foi de US$ 10,7 bilhões, com queda de 54% em relação ao mesmo período de 2001.

Mas, ao longo dos governos de FHC, a carga tributária subiu de 25% para 34% do PIB. O total da arrecadação de impostos federais, que em 1994 era de R$ 64,3 bilhões, em 2001 registrou o recorde de R$ 196,8 bilhões. Na última prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o PCdoB entendeu que o imposto sobre o cheque não serve à saúde do povo brasileiro, mas ao vigor do ajuste fiscal e do sistema financeiro. E votou contra. Somente em 2001, dos R$ 17 milhões arrecadados da sociedade, R$ 5,5 bilhões foram desviados da Saúde, da Previdência e do Fundo de Combate à Pobreza. E, ainda em maio de 2002, já haviam sido desviados 75% dos recursos captados com a CPMF – um pesado esforço tributário confiscado à população para assegurar a receita que gera superávit e o robusto caixa de compromissos financeiros acordados com o FMI. E, claro, a favor dos grandes investidores financeiros, também quando FHC e sua equipe econômica isentaram os aplicadores das bolsas de valores da alíquota de 0,38%.

Os cortes nos investimentos foram crescendo para gerar superávit primário no setor público e, desse modo, satisfazer o FMI e o capital especulativo: em 1995 havia superávit da ordem de R$ 1,7 bilhão; em 1997 houve déficit de R$ 8,3 bilhões; em 1999, após um ataque especulativo, houve um corte drástico de recursos nas áreas sociais e nos investimentos em infra-estrutura e o superávit passou para R$ 31,1 bilhões; em 2000, R$ 38,2 bilhões e, em 2001, R$ 46,6 bilhões.

Orgia financeira, inflação e desemprego

Essa falsa política estagnou a produção e empurrou milhões de brasileiros para o rumo do desespero, da fome, do lixo e da criminalidade, mas fez com que o luxo, a opulência e o gáudio dos grandes banqueiros privados, beneficiários da estabilidade monetária e dos juros acachapantes, fossem ao paroxismo (lucro de 355%, entre 1995 e 2001). O lucro dos grandes bancos privados quase triplicou na vigência do Plano Real: os dez maiores* auferiram R$ 3 bilhões em 1994 e R$ 8,4 bilhões em 2001, e um lucro consolidado de R$ 41 bilhões nos oito anos. Além disso, como sobremesa nesse banquete, pagaram R$ 2,6 bilhões de imposto de renda em 1994 e apenas R$ 1,29 bilhão em 2001. Nesse mesmo ano, os lucros dos banqueiros foram três vezes superiores ao lucro das empresas do setor produtivo nacional (de 17% para a agiotagem a 5% a 7% para a produção). Atento a esse desempenho dos principais responsáveis pelo seu caixa dois nas campanhas de 1994 e 1998, o presidente FHC quis demonstrar-se ainda mais generoso. Especialmente com os que, mesmo ganhando na ciranda financeira, emitissem cheques sem fundo. Por isso, destinou R$ 37 bilhões para o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (Proer), segundo o relatório da CPI dos Bancos, do Senado Federal.

Mas, ao mesmo tempo, foi mau, muito mau, com o povo. Nunca o País presenciou tanta especulação financeira: de acordo com as taxas divulgadas mensalmente pelo Banco Central, quem aplicasse R$ 100,00 na caderneta de poupança em agosto de 1994, obteria R$ 324,00 no final de agosto de 2001, somados o principal e os juros, mas quem tomasse empréstimo de R$ 100,00 no cheque especial, no mesmo período, teria uma dívida de R$ 160.000,00.

O pagamento dessa conta veio na forma de uma inflação escamoteada, numa sucessão de aumentos de tarifas e impostos do telefone, da água, da energia elétrica, dos combustíveis (inclusive do gás de cozinha), das passagens de ônibus, dos medicamentos, da carne, do feijão, do arroz e até dos ícones do Real – o pãozinho e o frango. Após a crise de abastecimento da energia, fruto dos investimentos não realizados, a população, que administrou o desgoverno naquele período, passou a pagar o passado e o futuro dessa crise na própria conta do consumo mensal. A Fundação Getúlio Vargas revela que o Índice de Preços por Atacado e o Índice Geral de Preços do Mercado atingiram, em 2002, 19,88% e 14,82%, respectivamente.

E ampliou-se a crise social. Dos 16 milhões de trabalhadores empregados, dez milhões são dominados pela precariedade e instabilidade do subemprego; 60% dos brasileiros trabalham sem carteira assinada e, de acordo com a CUT, aumentaram (1998/2000) de 23,5% para 25,5%. O crescimento do desemprego é oficialmente indiscutível: com critérios que indicam índices bem inferiores aos do DIEESE, o IBGE conclui que, entre 1995 e setembro de 2002, o índice de desemprego praticamente dobrou de 4,67%, para 8,25% ao ano, indicando a presença de cerca de 14 milhões de desempregados. Segundo o Dieese, a taxa média de desemprego total – desemprego aberto mais oculto – nas seis maiores regiões metropolitanas, aumentou de 14,6% em 1993 para cerca de 16,6% em 2001, o que significa um crescimento de 30%.

A perversa distribuição da renda atingiu o paroxismo. O mais recente censo oficial (do IBGE) revela que é aviltante a renda da massa dos brasileiros ocupados: 51,9% trabalham por algum alimento, auferindo até dois salários mínimos (SM). Um em cada quatro (24,4%) ganha até um SM; 27,5% estão na faixa entre 1 e 2 SM. Há ainda a faixa dos que ganham de dois a três SM (13,6%); e outras duas situadas entre três e cinco SM (14,2%) e de cinco a dez SM (12,5%).

Essa crise social veio junto com o crescimento do exército de excluídos para cerca de 50 milhões, da fome que se generalizou nessas faixas da população, no ressurgimento das epidemias como a dengue – oriunda do desvio dos recursos do Saneamento para os rentistas e da demissão em massa dos agentes sanitários – e no agravamento das precárias condições de saúde para os que dependem do atendimento público, no crescimento vertiginoso da violência e da criminalidade. Os CIEPS foram reduzidos à função de grupos escolares, funcionando meio-expediente, e, no Rio de Janeiro, 15 deles foram transformados em delegacias de polícia que incluem entre seus presos, ex-alunos. Hoje, os comandos do narcotráfico lideram a guerra civil branca em pleno curso nas grandes capitais como o Rio de Janeiro e São Paulo, governando literalmente os bolsões de miséria produzidos pela política neoliberal adotada pelo presidente FHC.

Esse gigantesco passivo social, ao lado da profunda dependência aos centros financeiros internacionais (e de um imenso passivo externo), oferece a dimensão da tarefa a ser enfrentada para que se coloque o País no rumo de sua sonhada prosperidade. Eis, portanto, o legado de FHC: um país à beira da ruína, com seu povo empobrecido, a economia estagnada, a soberania ferida e a democracia mutilada. O governo do presidente eleito, aclamado pelo voto de um contingente superior a 52 milhões de brasileiros, foi conclamado nas urnas a reconstruir com absoluta prioridade o Estado nacional, sob a égide da soberania, da democracia e do resgate dos direitos do povo brasileiro.

Luiz Carlos Antero é sociólogo e assessor da bancada federal do PCdoB.

EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31