Vinte anos atrás, Carlos Drummond de Andrade nos deixava. Sua obra lírica, sempre viva desde 1930, permanece como pedra no caminho de quem lê, estuda e produz poesia no Brasil. São quase cem anos de influências e enigmas que uma obra consciente e longeva fez brotar. Há quem fale de um certo padrão-Drummond, que reveste os olhos de críticos, leitores e poetas. Uma sombra literária que (negue-se ou confirme-se) seria inescapável.

      Talvez isso se deva ao fato de a obra de Drummond possuir, nos termos da história de nosso sistema literário, uma importância somente comparável à equação literária de Machado de Assis: moderna, nacional e negativa. Sobre esse tripé, a obra de Machado consolidou a formação da literatura brasileira. Também sobre ele, Drummond construiu um estatuto lírico capaz de resgatar, do meio da festa modernista, um olhar abrangente, tenso, inquieto e torto sobre as coisas do mundo, do Brasil e da poesia. O mineiro, com o tino rápido para a sintonia do lirismo com o real foi capaz de criar versos que viraram ditos de rua, quando a norma modernista rezava exatamente o contrário. Quem já não disse: “e agora, José?”. Sua voz lírica é, portanto, algo que viceja, pelo dinamismo e pela abrangência: sendo de um, é de todos; sendo única, é muitas.

      A crítica tornou a questão sobre o estatuto do eu lírico drummondiano a busca central dos estudos sobre sua obra poética. Afonso Romano de Sant´ana foi o primeiro a obter uma visão abrangente do eu lírico de Drummond, carimbando-lhe definitivamente o rótulo da gaucherie. Em Drummond: gauche no tempo (Record, 1992), Sant´ana dá cores cósmicas, existencialistas e cosmopolitas ao torto lírico mineiro. Entretanto, a gaucherie de Drummond tem uma materialidade muito característica das pedregosas estradas de Minas, nas quais o eu incurioso recusa, nada mais nada menos, que a oferta da Máquina do Mundo. Isso foi o que mostrou Antonio Candido no seu “Inquietudes na poesia de Drummond” (Vários escritos, Duas Cidades, 1995). Para Candido, o eu drummondiano inquieta-se pelo fato de que, quando fala do mundo, ocorre-lhe que seria melhor falar do eu; quando fala do eu, sente remorso, porque seria melhor falar do mundo. Nesse hiato de frustração, estaria toda a força de uma poética vigorosa. Mais recentemente, Davi Arrigucci Jr. estruturou uma visão sólida e abrangente do eu lírico drummondiano, conferindo-lhe a característica meditativa. Em Coração Partido (CosacNaify, 2002), Arrigucci Jr. observa a postura sentimental e reflexiva do poeta. Antes de falar de si ou do mundo, segundo ele, o poeta estaria preocupado com a postura de reflexão desiludida e incômoda diante do mundo.

      Acredito que um conceito capaz de ampliar a percepção sobre o lirismo de Drummond, reunindo matizes de muitas das análises que tanto já avançaram nesse sentido, seja o de “cisma”. O poeta de Itabira é um lírico “cismado”. Isso é o que lhe dá um grão de instabilidade e desconfiança e injeta profundamente o Brasil nos músculos da poética. Cisma significa devaneio, sonho, fantasia, absorção em pensamentos. Também pode significar preocupação ou inquietação. Se atentarmos para o uso popular da palavra, acharemos, entre os seus significados, a indicação de capricho, teima, obstinação. A cisma é, pois, um conceito que carrega o entrave. É isso que, para além de qualquer conteúdo evidente ou arquitetura poética, permanece como valor literário perene na poética de Drummond. Sua lírica é um sistema de entraves.

      Tal sistema de entraves aparece condensado, por exemplo, na postura do personagem do inesquecível poema Itabira: “Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”. É desse eu lírico caramujo (tímido, recolhido, reticente, oblíquo) que saem os ditos de maior vigor e negatividade da história do nosso Modernismo. Um eu caramujo que nem por isso deixa de soltar contra o leitor os cachorros da violência e do mau humor: “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”. Aí está, talvez, a razão do fascínio que Drummond exerce ainda hoje sobre nós: em sua poesia não há concessões; trata-se de uma lírica armada até os dentes com a força dos problemas reais. Nada nela é fácil ou agradável.

      A força dos versos de Drummond está, por exemplo, figurada em “Confidência do itabirano”, poema capaz de explicar o percurso do capital num terreno periférico, sem descuidar-se também da reflexão sobre a literatura e sobre o íntimo da subjetividade provinciana, inadequada à situação de urbanidade: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas/ hoje sou funcionário público/ Itabira é apenas uma fotografia na parede/ mas como dói!”. A postura cismada do eu, nesse e em tantos outros poemas, impele-o à confidência, ao tom da conversa ao pé do ouvido, capaz de abrandar (no poeta e no leitor) certo sentimento de culpa e um bom tanto de dor. Uma dor lírica que é gerada também pela descrença na poesia e pela incerteza da enunciação poética. Seria o caso de fazer uma leitura mais atenta e mesquinha de sua obra para contar com precisão as vezes em que aparece nos poemas a expressão “não sei” (e seus correlatos), como no enigmático desfecho um tanto kitsch de “Morte do leiteiro”: “escorre uma coisa espessa/ que é leite, sangue, não sei (…) formando um terceiro tom a que chamamos aurora.”

      Além de tudo isso, povoa a cisma drummondiana uma coleção de fantasmas, parentes mortos, coisas sem préstimo, que contam a origem de entraves pessoais e públicos, ao revelarem a origem do clã dos Andrades e as raízes de um patriarcalismo que vige, muito embora o país tenha modernizado o verniz das suas relações sociais. Assim, a lírica de Drummond carrega, em livros tão distintos quanto Claro Enigma e os da série Boitempo, o beijo dos antepassados mortos, que reluz insuperável, como em “Os bens e o sangue”: “Face a face/ te contemplamos, e é o teu primeiro/ e úmido beijo em nossa boca de barro e sarro”.

      Sarro é o resíduo que fica, o que não se lava, o que não se esvai, muito embora o tempo passe. A lírica de Drummond, cheia de cismas, impasses, entraves, fantasmas que não nos deixam, é certamente algo que não passa. É um coração moderno, nacional e negativo que ainda bate desafiadoramente para cada um que se proponha a enfrentar a poesia em língua portuguesa. Um coração mais vasto que o mundo e do tamanho exato de cada um de nós.