Uma vez era você meio doida me citando Borges sem saber.
                        Seu sorriso era uma esquisita delícia,
suco de beterraba
derramado no carpete branco
naquele bate-papo de fim de tarde

Era eu lhe dizendo que a orquestra era uma fraude
                                   que só havia corrupção
                                   que o maestro tinha comido a pianista.
                                   E a gente rolando no chão
                                   querendo se lambuzar
com beijos do tamanho do mar.

Era você com aquele jeito doce que dizia
que no teatro havia cocaína
                                   e toda noite era um delírio
embalado pelas mil e uma carreiras.

Era você meio cética me dizendo que amava E.M. Foster
                        e eu sem saber porque a amava
daquele jeito, como se ama rock’n roll.

E você não entendia porque eu dizia
que a televisão era uma classe
                        em que se reuniam pessoas fracas pra fazer
                        strip-tease na novela das oito.

Era a gente ao rés do mundo falando
que a cidade estava sitiada,
                        temendo mesmo de longe o Hizbollah e rindo
com o candidato que cumprimentou uma mulher de plástico,
                        observando que a mancha roxa no carpete
                        tomava aos poucos o formato do mapa da Índia.

Era a gente dizendo um pro outro
que era preciso esquecer tudo aquilo
que a nossa vida periodicamente virava esquecimento
                        que era preciso passar à frente
                        que era preciso parar de gritar de gozo
                        e enfrentar a segunda-feira.

Era eu fazendo perna de índio e comentando a volatilidade do mercado
                        derramando-me todo pelas esquisitices do BNDES
                        arrotando ignorância ao pichar o imperialismo
                        escrevendo minha honra a giz na sua frente.

E você ainda quis falar da atmosfera
                        da umidade relativa do ar
                        de dois ou três poemas em que Cecília Meireles
                        tinha usado a palavra música.

Eu talvez quisesse dizer-lhe algo sobre Lacan
algo sobre a famosa e estranha persistência do pós-modernismo
                        algo sobre as execuções
feitas pelos policiais nas favelas paulistanas
                        sobre as sevícias que se cometem na guerra
                        algo sobre Antonio Banderas ou Angelina Jolie.

Tudo isso era o que não foi. Tudo isso era uma vez…
Teria sido solamente una canción?

Era você me mandando ser mais sintético e menos autêntico
                        usar a linguagem mais milimetricamente
                        – Honestidade não ganha jogo!
…que minha poesia andava meio molhada demais
eu mandei você embora, sem amá-la, sem pancada,
sem xingá-la de vadia, suburbana, meu amor…

Embriagado acordei e era outro dia
e outro diário estava em minha porta.
E a impressão inefável do seu corpo tomava conta do ar que entrou na casa;
                        Minha pele já se sentia mais velha e cheia de arranhões
que faziam em mim um reumatismo etéreo
por eu saber que também serei esquecido,
junto com nossa eterna paixão
e os fatos diários que hoje bebem o suco gástrico dos peixes.