Filha da cobra grande Boiúna, a cultura ribeirinha, desde menina, se manifesta em festa na boca da primeira noite do mundo. Saída, por necessidade e acaso, do caroço de tucumã [Astrocarium vulgare], na grande ilha do Marajó, país natal de nossa avó. Ela canta e fala duma Amazônia genuína: espaço-tempo superúmido que se esconde no barro dos princípios do vasto mundo, entre chuvas e esquecimento, no complexo tecido imaterial do mito e da história oral à beira do rio-mar. Caminhos ribeirinhos feitos e refeitos a pé, desde menino, no sítio do igarapé há 10 mil anos atrás. A bom remar e gapuiar peixe do mato e inventar o futuro nos rumos ainda escuros do Icoaracy: águas do sol nascente pintadas com a viva experiência do poente e esperanças desta nossa gente descendente da antiga terra Tapuia.

a re-fazenda dos gados do rio

      Dos tesos de camutins no igapó até hoje em dia na Academia do Peixe Frito, na Cidade morena; a gente peleja pra dar conta do recado. Seja tomando bença de santo de igreja ou se benzendo com pajé, pela fé da Mucura em noite escura. Na travessia incerta da canoa ao clarão da lua, com a crença de babalorixá por leme a gente inventa caminho acredita acertar o rumo: que o nosso tempo ainda há de chegar… A gente sabe que não é bandalheira: a História apenas começou, aqui e agora, no solar da Beira; feira do Ver-o-Peso, beira do cais da baía do Guajará. A gente resiste e insiste o tempo todo! A gente bota a boca no trombone: vamos (se Deus quiser e o povo disser amém, vamos s’embora pra frente, esta gente!) retomar a velha companhia Port of Pará. Cuidar da re-fazenda de gados do rio, restaurar a “Veneza amazônica” com inclusão social do arquivado plano Gronfelts, a revitalizar o Reduto… Chega de exportar drogas do sertão por dez réis de mel coado a tonelada bruta! Chega de caboco dar murrada em ponta de faca. Já é tempo de viração. Agora é hora de importar divisas mais decentes com a inteligência da gente, com vantagens sociais do povão. Não diga, não, seu doutor. Por favor! Não foi à-toa que o povo brasileiro colocou Lula lá em riba… Maré enche e vaza, no meio faz um remanso, o tempo passa e a gente luta sem descanso. Faça sol ou faça chuva…

aprendizes da Jararaca

      Não deve ser só venha a nós, os ribeirinhos coitadinhos… Que, Deus te livre, pedem a mão e querem logo te comer pelo pé e deixam em maus lençóis padrinhos aloprados. Carece saber que somos aprendizes da Jararaca. Aquela velha malvada da fronteira entre o bem e o mal, que quando não mata aleja o matuto pra deixar o sobrevivente mais esperto que o Diabo, na escala da evolução das espécies deixadas ao deus-dará no Grão-Pará velho de guerra… Há que se fazer a mudança pela raiz! A gente tem criatividade e força de trabalho em quantidade pra dar e vender às cidades pobres de naturalidade.

 desenvolvimento sustentável: codinome, descolonização

      Antes, porém, de pedir à re-fazenda dos gados do rio em dez mil e tantas comunidades ribeirinhas e reservas agroextrativistas, por exemplo, com pólo de difusão técnica e gerenciamento central num grande Parque / Aquarium Amazonicum integrado à revitalização da Port of Para e Reduto; carece, primeiramente, agradecer ao Lula Presidente da gente. Porque ele, lá em riba no Planalto, ouviu a voz do povo de baixo de sol e chuva nos campos de Cachoeira e na feira do Açaí [Euterpe oleracea], no Ver o Peso. Ele mandou o Patrimônio da União agasalhar caboco sem eira nem beira na velha varja de nascença da cultura ribeirinha.

Nossa Várzea

      Senhores manda-chuva se diziam donos da varja por conta das tais sesmarias. Doutores sabiam que dona de terra de maré é a União. Mas porém, os sábios diziam que democracia não dá pé quando se trata de incluir direitos de cabocos. De fato, no mato sem cachorro, a gente era servos da gleba do belo edífício Paris n’América e toda mais arquitetura brega-moderna sobre ruínas coloniais da belle époque da Borracha. Agora, vai ou racha! Até a saracura canta e faz barulho pra avisar o caboco sobre o esbulho. Outrora, o tremendão tupinambá respeitava a fama das ilhas dos Nheengaíbas, ainda que ele as quisesse conquistar. O branco panaquiri [holandês] chegou devagarinho, trazia miçangas pra fazer escambo de paus de tinta e gados do rio. Já vai pra 350 anos (2009), o payaçu Vieira mandou recado de pazes ao Marajó e nossos avós aceitaram – depois de 40 anos de guerra suja de arcabuz contra zarabatana pra mandar estrangeiros embora e varar pra dentro do rio das Amazonas, onde plantar cana sacana – a troco de liberdade e paz na terra natal, nos termo da lei d’El-Rei do ano de 1655. Legislação fraudada, continuamente, durante um século: até a “solução final” do Diretório dos Índios (1757), expulsão dos Jesuítas e doação das fazendas das missões aos Contemplados (1759). Artífício civilizacional colonial etecetera e tal, com que o índio foi “extinto” por decreto e inaugurado e batizado sob a pele dos cabocos. A Academia nacional ainda se lembra, será?

 viagem histórica de Lula ao Marajó

      A universidade habitada de P.h.D’s cursados e concursados com dinheiro público tem obrigação de saber e ensinar estas coisas da gente do andar de baixo do edifício social. O operário Lula não. Assim mesmo, doutos jurisconsultos empacaram o andar da História, não providenciaram reparação dos danos feitos ao povo pelas Capitanias Hereditárias parasitárias. Porém, o mal amado das elites, Presidente Lula, fez o gesto mais certo pra esta gente se recuperar da queda, em três séculos e meio de história cabeluda. Assim se passaram dias e noites até Lula vir a Breves dar início à compensação federal da expropriação colonial da terra indígena marajoara. O Presidente da República Federativa veio à ilha mãe da amazonidade, remediar a sonegação histórica da paz de Mapuá (1659) que deu lugar à capitania dos Barões de Joanes, fidalgos habitantes de Lisboa numa boa. Legal! Deu até, paresque, no rádio e televisão. Quero ver agora quem vai mandar a gente cair fora e nos obrigar a trabalhar de graça pra ter lugar de moradia no nosso próprio chão avoengo. Agora a gente fica por dentro da História! O Açaí é nosso! A gente tem mais é que comemorar na Academia do Peixe Frito ao azeite de patauá [Oenocarpus batauá], onde o sarau é tão bonito como na festa da Mucura, nas ilhas filhas da pororoca.

a brasilidade passa pela amazonidade

      Só falta a brava gente brasileira ouvir o grito do caboco, entender que a brasilidade passa pela amazonidade da qual a varja é costumeira. Que nos desculpem patrioteiros de praxe, o resto é besteira. Não é caso de discutir se a Amazônia é brasileira por papel passado com força de tratado e notícia histórica. O que vale, principalmente, é o fato de nossa presença atestada na escrita do barro na cerâmica ancestral. A certeza do Brasil brasileiro ser o maior país amazônico da Terra. O território nacional é posse imemorial através de rios e lugares ocupados pelo povo das águas. Por isto, nada mais natural que o marco máximo ribeirinho – sobre a “linha” cabo-verdiana de Tordesilhas –, em Belém, seja assinalada futuramente pelo emblemático Parque / Aquarium Amazonicum que há de vir da vontade política através da prancheta. O melhor presente do Brasil aos 400 anos da Feliz Lusitânia (2016), projetada da Nova Lusitânia, arquitetada pela velha Lusitânia sobre os oceanos. Pra todo mundo ver o peixe e respeitar o amigo pescador:

Oh, louvado seja o amigo pescador!
Aquele fundador das dinastias do Nilo
Grão-mestre dos mistérios da Sibila
O sábio astuto que educou a Grécia antiga
Os supersticiosos barqueiros de Alexandria
Guiados pelo instinto e a luz do Faro
Os que iluminaram o Ocidente obscuro
Até o Pescador galileu vir converter Roma.

Oh, louvado seja o amigo pescador!
Atrás do peixe no golfo da Guiné
Remador de caiaques do rei Mandinga
O que atravessou o grande “rio” Salgado
E descobriu a corrente equatorial marinha
Sem a qual o cartógrafo Duarte Pacheco Pereira
Não acharia o Maranhão e Grão-Pará
Nem o fidalgo Cabral faria descoberta do Brasil
O navegante negro que juntou o Nilo ao Amazonas.

Oh, louvado seja o amigo pescador!
O canoeiro destro na arte da gapuia
Na beira do igapó
O apanhador de açaí e catador de caranguejo
O engenheiro dos tesos da ilha do Marajó
Aquele escriba do acaso que pela primeira vez
Rabiscou a pedra virgem da serra Paytuna.

 

Belém-PA, 13 de maio de 2008