No decorrer de suas atividades, a Comissão Especial pôde elaborar o inventário de problemas e desafios à espera de soluções adequadas que compatibilizem o compromisso civilizatório da sociedade brasileira para com o meio ambiente e a necessidade de assegurar ao País e ao povo a legítima aspiração ao progresso e ao pleno desenvolvimento como valores essenciais ao bem estar material e espiritual dos brasileiros. Pensamos que a unidade em torno de tais objetivos exige uma legislação ao mesmo tempo rigorosa nos seus princípios e metas conservacionistas e preservacionistas, mas o suficientemente capaz de permitir a atividade agrícola e pastoril e as obras de infraestrutura que acompanham o seu desenvolvimento.

Ao contrário dos Estados Unidos e da Europa, que jamais adotaram o conceito de Reserva Legal e destruíram – no caso da Europa, completamente; e no caso dos Estados Unidos, quase completamente – suas matas nativas, o Brasil conservou de tal maneira que hoje, sozinho, é detentor de quase 30%, entre todas as nações, do que restou da cobertura vegetal original do planeta.

A Reserva Legal imaginada por José Bonifácio e cujo espírito foi mantido no código de 1935 e em sua versão de 1965, como aqui já foi dito, dirigia sua preocupação para assegurar o provimento de madeiras para as propriedades e o Estado. Foi por conta da crescente preocupação ecológica com a sobrevivência da flora e da fauna e com a conservação do solo e da água que o papel da Reserva Legal foi amplamente modificado. Antes entregue ao arbítrio do proprietário quanto a sua utilidade, a Reserva Legal tornou-se intocável para preencher suas novas e necessárias funções. Daí então deu-se o paradoxo: conservada por sua utilidade para os proprietários, converteu-se em “obstáculo” ao melhor aproveitamento da propriedade.

O conflito entre o valor individual da propriedade agrícola e o bem coletivo da Reserva Legal estabelecido na evolução da legislação, levou a que os proprietários procurassem se desfazer de suas reservas na medida em que não representavam um bem de seu usufruto. O próprio Estado era capturado por esse conflito nas suas políticas públicas, particularmente na de crédito para a agricultura, quando se via diante do seguinte dilema: a maior garantia para os empréstimos que oferecia aos agricultores era diretamente proporcional à área da propriedade destinada à produção, ou seja, quanto maior o percentual de mata em uma propriedade, menor a garantia que o proprietário oferecia ao pagamento do crédito. O próprio Banco do Brasil condicionava os empréstimos ao desmatamento da propriedade.

Em países capitalistas, foi impossível encontrar legislação semelhante à adotada no Brasil. As reservas florestais ou são públicas, ou compõem o mercado do que se denomina “pagamento por serviços ambientais”, que remunera o proprietário privado pela proteção de um bem considerado de interesse público ou coletivo.

Pesquisadores que estudaram as consequências ambientais, econômicas, sociais e administrativas da Reserva Legal nos termos atuais são unânimes em apontar as precariedades, limites e impossibilidades de sua aplicação em território continental, diversificado, desigual e carregado de desequilíbrios como é o caso do Brasil.

O professor Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, embora defenda a atual legislação, ao responder sobre o que pode ser feito para conciliar a conservação da vegetação natural e o desenvolvimento da agropecuária, disse: “Pensar as revisões do Código Florestal regionalmente. As relações entre a agropecuária, a conformidade com o Código Florestal e a ocorrência de vegetação natural no Brasil são muito complexas e diversas; não há como criar uma regra nacional que se adapte a todas as situações. Além disto, criar um novo mecanismo que possa proteger os 104 milhões de hectares de vegetação natural que mesmo com a aplicação integral do Código Florestal não estariam protegidos. Este mecanismo pode ser um compromisso em torno do Desmatamento Zero”.

No mesmo caminho, Sparovek reconhece as dificuldades materiais para a implantação da Reserva Legal: “Considerando o Brasil com um todo, num caso hipotético em que fosse feita a recuperação de todo déficit pelo restabelecimento da vegetação natural através de plantio, haveria um custo provável de duas vezes o PIB anual de todo o setor agropecuário, apenas com o plantio, sem considerar a perda da produção nas áreas reconvertidas. Esta, com certeza, não é uma solução realista considerando prazos curtos ou médios.”

Já o professor Sebastião Valverde, da Universidade Federal de Viçosa, considera que “o Brasil, de dimensões continentais, comporta uma realidade rural múltipla. Isto implica na existência de distintas condições relativas ao solo, ao relevo, à vegetação e ao clima, que fazem com que a maior parte de uma propriedade possa ser abrangida por áreas de preservação permanente (APP) e Reserva Legal (RL)”.

Valverde, professor do Departamento de Engenharia Florestal, critica as “leis absurdamente restritivas, proibitivas e punitivas, portanto inexequíveis, além de instituir mecanismos de gestão sob comando e controle cada vez mais burocráticos e impeditivos do desenvolvimento econômico, mecanismos estes que oneram e inviabilizam a produção no campo e os investimentos produtivos e estruturantes. Obviamente que, por outro lado, há a preocupação constante de não se hesitar mais no trato das questões ambientais ao se abrandar seu uso e ocupação, haja vista o resultado desastroso que levou, em muitos lugares, à degradação ambiental”.

José Sidnei Gonçalves, pesquisador do Instituto de Economia Agrícola (IEA) do Estado de São Paulo, em trabalho apresentado no XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (SOBER), alerta que “exatamente nos municípios mais carentes, pelo fato de que suas economias dependem mais da agropecuária para formar o valor adicionado que do comércio e dos serviços urbanos, as mesmas dependem diretamente do desempenho econômico das propriedades rurais, os efeitos serão mais dramáticos com perdas de recursos tributários recebidos por transferência, comprometendo as suas receitas, que já são minguadas. Ainda se mostra relevante destacar que a perda de 3,7 milhões de hectares pela agropecuária paulista, equivale a 19,9% da área cultivada” (Anexo 4 do Relatório). O estudo revela que a Reserva Legal ampliaria a desigualdade de renda entre os municípios mais pobres e os mais ricos, multiplicaria o desemprego e as carências logo onde mais estão presentes, ou seja, entre os pobres.

O procurador da Fazenda Nacional, Luís Carlos Silva de Moraes, em trabalho para este Relatório, apontou outros efeitos colaterais no caso da aplicação da Reserva Legal, entre eles a redução da carga tributária da União, dos estados e municípios a partir do Valor Adicionado Bruto da Agropecuária ao PIB (VAB-Agro), com impactos irreversíveis no orçamento, renda e emprego nos municípios vinculados à atividade agropecuária.

O consultor legislativo Aércio S. Cunha, especialista em agricultura e política rural, ofereceu alternativa – em parte acolhida pela relatoria – no trabalho Agricultura e Meio Ambiente: Uma Contribuição ao Projeto do Novo Código Florestal em que defende a elaboração de programas de governo “moldados às necessidades, às características físicas, ao histórico da ocupação e aos objetivos almejados pelas unidades federadas”. Segundo o consultor, “os programas são uma alternativa ao atual regime de reservas legais, em especial em áreas de agricultura consolidada, mas devem contemplar também a recomposição de áreas de preservação permanente, onde isso for possível e recomendável, técnica e financeiramente”.

A Área de Preservação Permanente tem legislação variada em todo o mundo. Nos Estados Unidos pode ser encontrada em alguns Estados como Maryland e Virgínia, como também pode ser desconhecida em outros, a exemplo da Pensilvânia, onde o poder público pode declarar aleatoriamente áreas de “alta qualidade ou valor excepcional”. Na Austrália, a maior metragem para proteção dos rios, de 20 metros, é inferior à mínima adotada no Brasil, de 30 metros. A Suécia prevê proteção dos rios com mata ciliar que varia de 5 a 10 metros em cada uma de suas margens, mas não há proibição da prática de atividades florestais, apenas a recomendação para não se usar fertilizantes e defensivos ao redor de nascentes num raio de 50 metros. Em Portugal, a recomendação sugere manejo da mata ciliar até uma distância de 10 metros dos cursos dos rios para controle da erosão. A Finlândia adota medidas de proteção dos cursos d’água, porém não determina limites obrigatórios e realiza análises em cada caso concreto. O denominador comum das legislações europeias é a permissão de uso das APPs mediante licenciamento. Quase nada é proibido, quase tudo é permitido no aproveitamento do solo, escasso diante da carência de terras para produzir o alimento necessário à soberania desses povos, provados em guerras e fomes quando não tinham, dentro do próprio território, o pão de cada dia.

É inconcebível para esses países converter terras férteis e produtivas em áreas florestais. Por mais que julguem a proteção da natureza um bem coletivo, põem acima dele a necessidade de alimentar sua população e não depender de ninguém para isso. A China usa 100% do seu estoque de terras agricultiváveis; a Índia se aproxima desse índice; os Estados Unidos usam muito mais do que o Brasil. É preciso ponderar aquilo que já utilizamos com a disponibilidade do território, pesando a recente advertência da FAO (Organização para Agricultura e Alimentação da ONU) de que o mundo necessitará, até 2030, de mais 1,5 bilhão de hectares de novas áreas para a agricultura e que novas áreas disponíveis só existem na África e na América Latina.

Ao determinar reserva de 20% na área da Mata Atlântica e 80% na Amazônia Legal, a legislação criou um outro problema de difícil solução. No Rio Grande do Sul, as mais de 600 mil propriedades não possuem o estoque necessário para cumprir a exigência, ficando portanto na ilegalidade. No Norte do País, a exigência inviabiliza o retorno do investimento, fixando na prática uma moratória branca para a atividade produtiva. O Estado do Amazonas, embora tenha uma área mais de seis vezes maior do que o Rio Grande do Sul, tem menos de 10% do seu número de propriedades, ou seja, pouco mais de 50 mil, e possui 98% do seu território coberto por vegetação nativa, de tal forma que é mais fácil ao Amazonas cumprir a exigência de 80% de Reserva Legal, do que ao Rio Grande do Sul alcançar a meta de 20% da Mata Atlântica.

Ao estabelecer uma norma geral sem que permitisse a cada estado encontrar solução adequada às condições de ocupação do território e de estrutura da propriedade da terra, a legislação tornou impossível seu cumprimento. Os seguidos decretos presidenciais adiando a entrada em vigor de alguns de seus dispositivos constituem evidência de que essas normas entraram em conflito com a diversidade, as desigualdades e os desequilíbrios do País.

A tentativa que aqui se faz é a busca de uma adequação da norma nacional, que pode permanecer, mas submetida às possibilidades de cada estado aplicá-la de acordo com suas particularidades, até que no futuro a sociedade nacional possa se debruçar com mais informações e mais estudos sobre a apropriação das riquezas do Brasil pelo seu povo.

Os estados ficarão obrigados a acatar a norma nacional na forma atual ou constituindo reservas coletivas mediante Zoneamento Ecológico-Econômico, Planos de Recursos Hídricos ou estudos técnicos e científicos realizados por órgãos oficiais de pesquisa. As áreas atualmente em uso serão tomadas como espaço consolidado da atividade agrícola e da pecuária até que, no prazo de cinco anos, cada estado defina a adesão ao Programa de Regularização Ambiental. Pelo mesmo prazo, não será permitida a abertura de novas áreas para a agricultura ou pecuária.

As Áreas de Preservação Permanente terão suas restrições de uso mantidas de acordo com o regime atual, salvo aquelas de atividade consolidada, que serão alteradas apenas após o Zoneamento Ecológico-Econômico promovido na esfera de cada estado, obedecidas as exigências de estudos técnicos específicos. A medida maior de proteção de mata ciliar será mantida, com a redução da medida mínima dos atuais 30 metros para cinco metros. A alteração visa reduzir o prejuízo aos pequenos proprietários em cujos lotes há presença de cursos d’água de pequena largura e que dispensam matas ciliares com as larguras atuais.

Aos pequenos proprietários será dispensada a Reserva Legal, permanecendo obrigatória a Área de Preservação Permanente para a conservação do solo e das águas. Pensamos que esse esforço terá de ser acompanhado pela retomada do trabalho de extensão rural, abandonado em favor dos métodos puramente policiais e punitivos implantados pela cultura da nova burocracia estatal, formada pela fiscalização e pelo Ministério Público.

O jurista e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., em entrevista ao portal Consultor Jurídico (12 de abril de 2009) qualificou a legislação ambiental de “desastre” e “legislação mais envergonhante do Direito brasileiro”. O pior é que o Estado brasileiro tratou de torná-la ainda mais draconiana. A legislação não pune o dano, pune a conduta, pouco importando se ela de fato causou estrago ao meio ambiente – leve, grave ou irreversível. O Ministério do Meio Ambiente, em convênio com o Banco Central, pode impedir que os assentados da Reforma Agrária recebam crédito do PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar por não terem averbado Reserva Legal em suas propriedades. A questão é que muitos desses assentados tomaram posse de suas áreas quando estavam autorizados a ocupar uma parcela da terra que depois foi reduzida por dispositivo legal.

A memória das centenas de depoimentos colhidos permanecerá para os estudiosos, os legisladores, os produtores ou a simples curiosidade pública como um acervo dos horrores que foram praticados em nome da lei e da proteção do meio ambiente. Mas ela ficará também como depoimento eloquente de amor à natureza e ao País por parte daqueles que sempre estiveram ausentes quando das decisões sobre seus destinos e sobre o destino da natureza e do Brasil.