Vamos tirar o chapéu: a mídia tem sido uma poderosa e competente fábrica de "crises". Compreende-se. O ambiente político (político, não politiqueiro) tornou-se irrespirável para a direita nos últimos anos. O fato de o governo da presidenta Dilma Rousseff ter mantido a boa avaliação deixada por Luis Inácio Lula da Silva colabora para conduzir a direita a um dilema "jornalístico": como encontrar fatos que, levados às manchetes, atraiam mais público para a sua mensagem?

Palocci representava um setor da sociedade que colocava o governo em tensão permanente — um verdadeiro entrave aos projetos desenvolvimentistas. Não era, definitivamente, do campo progressista e nem mesmo do espectro centro-esquerda. Mas até as vidraças do Palácio do Planalto sabem que o alvo não era Palocci. Qualquer pessoa medianamente sã — e medianamente honesta — entende que ele saiu do governo não pelos motivos apotandos. Ou seja: caiu pelos motivos errados.

Direita autoritária e corrupta

O que se vê na mídia é, de novo, o mesmo desfile de sempre, protagonizado pelos que têm sede de autopromoção como "investigadores" de escândalos unidos à avidez de "jornalistas" empenhados em conseguir manchetes espalhafatosas contra o governo. O resultado é a manifestação que combina arrogância, grosseria, ignorância e, mais que tudo, uma irrefreável ânsia de aparecer. Essa direita autoritária e corrupta quer firmar na "opinião pública" a idéia de que a esquerda agora está comendo em seu cocho.

Não há dúvida quanto à origem dessas confusões políticas. Elas decorrem da crise do projeto neoliberal, que levou a América Latina a virar para a esquerda. Sem o amálgama da aprovação popular, os partidos de direita passaram a travar acirradas disputas em torno das mais variadas questões. A vergonhosa qualidade dos argumentos esgrimidos pela direita, no entanto, não exime a esquerda da tarefa de analisá-los com certa frieza, numa perspectiva temporal mais ampla.

Palavra-chave de Lula

As cassandras (pessoas que predizem com insistência desgraças ou situações indesejáveis) voltarão com novas pirotecnias tão logo o “caso Palocci” se distancie dos holofotes. A luta deles é contra a “palavra-chave” anunciada pelo ex-presidente Lula no discurso de posse do seu primeiro mandato, pronunciado no Congresso Nacional: mudança. “Esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro", disse ele.

A cruzada “moralista” da direita dá cartaz no noticiário, mas não consegue ocultar algo fundamental: poucas vezes um governo brasileiro teve a sorte de enfrentar inimigos tão desqualificados como os que enfrenta hoje. Nesse caso, o público ouviu novamente bravos discursos da oposição clamando por princípios e pureza. Mas, na vida real, quem estava fazendo esses discursos? Os tucanos, os demos, a mídia… Assim fica difícil!

Bandeira da mudança

Dilma sabe que o movimento político que ela lidera só tem futuro se manter a bandeira da mudança desfraldada. "O Brasil conheceu a riqueza dos engenhos e das plantações de cana-de-açúcar nos primeiros tempos coloniais, mas não venceu a fome; proclamou a independência nacional e aboliu a escravidão, mas não venceu a fome; conheceu a riqueza das jazidas de ouro, em Minas Gerais, e da produção de café, no Vale do Paraíba, mas não venceu a fome; industrializou-se e forjou um notável e diversificado parque produtivo, mas não venceu a fome. Isso não pode continuar assim”, disse Lula na sua primeira posse.

O presidente propôs a transformação do combate à fome em uma grande causa nacional, "como foram no passado a criação da Petrobras e a memorável luta pela redemocratização do país". A presidenta Dilma segue pelo mesmo caminho, anunciando que país rico é país sem pobreza. Mas o Brasil é o Brasil e isso tem conseqüências. Combater a pobreza é o mesmo que enfrentar problemas arraigados — a indústria da exclusão social da qual se beneficia uma elite desacostumada a cumprir leis e a distribuir renda.

Disciplina partidária

Quem administra uma crise como essa, no entanto, não pode ceder à emoção, não pode deixar a racionalidade naufragar. A impressão que a mídia quer passar é a de que todos não prestam e que os partidos brasileiros são sacos de gato nas mãos de negociadores profissionais. No mundo das verdades, as coisas são bem diferentes. Os cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, autores do livro Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional (Editora FGV), realizaram um extenso estudo das relações entre o presidente e o Congresso desde a promulgação da Constituição de 1988.

As principais conclusões: os partidos políticos brasileiros são extremamente disciplinados. Na média, 90% dos deputados votam rigorosamente de acordo com a orientação do partido. Embora presidencialista, o sistema brasileiro guarda muita semelhança com os parlamentarismos europeus. Nos dois casos, o Executivo controla a agenda política e comanda o processo de criação de leis no Congresso.

Conselho de Cláudio Abramo

A mensagem dos autores do livro é a seguinte: o sistema político brasileiro está muito longe do caos apregoado. Os presidentes vêm obtendo apoio para governar em bases partidárias sólidas. Os congressistas respeitam os acordos partidários. Não há entrave à governabilidade. A democracia poderia funcionar melhor? É claro que sim. Mas o regime político atual é, de longe, o melhor que o país já teve. Os dois mandatos do governo Lula fizeram do Brasil um país melhor inclusive institucionalmente.

Esse fato deveria ser objeto de demorado estudo por parte dos editores de publicações de qualquer natureza. Mas não é assim. Cláudio Abramo, conceituado jornalista com idéias situadas à esquerda no espectro político e respeitável ícone do jornalismo brasileiro — ele conheceu as entranhas de jornais como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo —, dizia que para ter democracia no Brasil é preciso começar fechando todas as TVs particulares. Esses latifúndios de mídia, dizia ele, são as primeiras trincheiras usadas pelas classes dominantes em casos de crises políticas. Ele não fez uma tirada inconseqüente — apenas disse o que acontece. Não porque achava, mas porque sabia.

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Editor do Grabois.org