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    Comunicação

    A era Collor – da eleição ao impeachment

    Do ponto de vista das lutas sociais e da participação popular, o chamado Fora Collor significou — ao lado da campanha das Diretas Já, ocorrida apenas oito anos antes — o principal momento recente de consolidação da jovem democracia brasileira. Na ocasião, impulsionadas por um forte sentimento de indignação, massas de manifestantes inundaram as ruas […]

    Do ponto de vista das lutas sociais e da participação popular, o chamado Fora Collor significou — ao lado da campanha das Diretas Já, ocorrida apenas oito anos antes — o principal momento recente de consolidação da jovem democracia brasileira. Na ocasião, impulsionadas por um forte sentimento de indignação, massas de manifestantes inundaram as ruas e praças das principais metrópoles brasileiras para exigir o fim do governo de Fernando Collor de Mello — um governo crivado por escândalos de corrupção e marcado por sua essência antipopular e antinacional.

    Neste livro, escrito por ocasião dos vinte anos daqueles acontecimentos, Rodrigo de Carvalho oferece-nos uma análise criteriosa sobre a campanha que culminaria no primeiro impeachment de um presidente da República em nosso país. Se tivermos em conta que a história da nação se conta em décadas e séculos, e não em dias ou anos, podemos afirmar que se trata de um episódio relativamente recente, sobre o qual há ainda escasso material para reflexão política e sociológica.

    Como afirma o próprio autor ao comparar os movimentos das Diretas Já e do Fora Collor, “é possível afirmar que o movimento das diretas possui já em nossos dias certa unidade de explicações e interpretações sobre seu significado para o país. O Fora Collor ainda carece de um debate mais apurado sobre os fatos, capaz mesmo de explicitar melhor as diferenças interpretativas sobre seu significado, ainda que não seja possível alcançar maior unidade de interpretações sobre esse fenômeno”.

    Da mesma forma que a mobilização pelas eleições diretas, o Fora Collor começou modesto. Com o tempo, porém — beneficiado pela deterioração do cenário econômico e pela erosão da base de apoio do governo Collor —, passou a mobilizar parcelas crescentes da sociedade brasileira. Como explica Rodrigo de Carvalho, o papel dos movimentos sociais e, em especial, do movimento estudantil, foi decisivo em uma campanha capaz de reunir, simultaneamente, os componentes de organização e direção política e a espontaneidade das massas.

    A histografia oficial sempre procurou ocultar ou deturpar o legado das lutas do povo à construção da nação. O livro de Rodrigo, de modo multilateral e equilibrado, revela o protagonismo da juventude estudantil, simbolizado na imagem épica e lírica dos caras pintadas, nesse episódio marcante da vida política do país. De igual modo, ele dá visibilidade ao desempenho das entidades históricas dos estudantes, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), núcleo propulsor e organizado desse levante juvenil.

    À semelhança de outros importantes movimentos cívicos da história nacional, o Fora Collor apresentou um expressivo vetor de mobilização e participação popular. Esse elemento, tantas vezes interpretado com o recurso à noção de ações puramente “espontâneas”, foi articulado, na verdade, por setores sociais organizados, como entidades, partidos e demais instituições cujo vigor testemunhava, já naquele momento, algo que se tornaria ainda mais visível na década seguinte, em tempos de Fórum Social Mundial: o amadurecimento da cultura associativa na sociedade civil brasileira.

    No debate sobre o Fora Collor, suas motivações e consequências, confrontam-se argumentos contrários e favoráveis à tese da aplicação do projeto neoliberal no Brasil a partir daquele governo. Reconhecendo que o debate entre essas duas correntes estabelece, por si só, um importante ponto de partida para a compreensão daquele episódio, Rodrigo de Carvalho posiciona-se, não obstante, ao lado daqueles que postulam o projeto neoliberal como base programática do governo Collor. Para o autor fica claro que, desde a campanha eleitoral, os princípios reunidos no chamado Consenso de Washington já eram claramente defendidos pelo candidato Fernando Collor. Seu governo agiria, mais tarde, de maneira absolutamente coerente com as posições hoje tidas e havidas como neoliberais.

    Ao contrário do que propagam a grande mídia e a intelligentsia conservadora, a vitória eleitoral de Fernando Collor de Mello em 1989 não teria sido obra do acaso ou um “acidente de percurso”. Na visão do autor deste livro, o candidato Fernando Collor foi o mais consequente defensor das teses neoliberais, o que lhe permitiu unificar em torno de sua candidatura parcelas majoritárias das classes dominantes, em um esforço hercúleo para evitar a vitória, em 1989, de Lula e da Frente Brasil Popular — fato que teria significado a guinada do país em direção a um projeto alternativo ao neoliberalismo.

    Assim, na perspectiva do autor, a tentativa de negar que houve neoliberalismo no governo Collor — e, portanto, que o impeachment significou a primeira grande rejeição ao projeto neoliberal em nosso país — representa na verdade uma atitude e uma resposta política. Estas materializam a tentativa, empreendida frequentemente por pessoas ligadas àquele governo, de desvincular-se do modelo econômico implementado por Collor, bem como de suas consequências, hoje claramente percebidas como deletérias para o futuro do país.

    Ao contrário dessa visão, que opera por meio de uma leitura sutilmente despolitizada e despolitizante dos acontecimentos, o que tivemos no movimento pelo impeachment de Collor foi uma vitória do povo brasileiro, ainda que momentânea, contra o projeto neoliberal. A palavra “momentânea” é evocada, aqui, providencialmente. Pois o mesmo modelo seria retomado anos depois — após um curto interregno, correspondente ao governo de Itamar Franco —, no período em que Fernando Henrique Cardoso esteve à frente da Presidência da República.

    Um dos méritos do livro é dar voz ao contraditório. No capítulo destinado a entrevistas, o próprio Fernando Collor de Melo, hoje senador da República, sabatinado, apresenta sua versão e suas convicções, com as quais o autor dialoga criticamente.

    Durante toda a década de 1990 os comunistas, a esquerda e o conjunto das forças democráticas e patrióticas se colocaram na linha de frente do enfrentamento ao projeto neoliberal, de tão graves consequências para a nação. A luta foi longa e encarniçada, durou mais de uma década e conheceu altos e baixos até desembocar em 2002, quando novas forças políticas e sociais, contrárias ao neoliberalismo, chegaram ao poder central da República através da candidatura presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva.

    O impeachment de Collor foi um dos momentos altos dessa longa trajetória de resistência. Hoje, vinte anos depois, vale a pena revisitá-lo à luz do momento atual — marcado pela luta por um novo projeto nacional de desenvolvimento. Uma luta que tem se revelado, uma vez mais, longa, difícil e tortuosa. Exatamente como naqueles momentos primordiais de construção da (ainda) jovem democracia brasileira.

    Finalmente — salve, salve — este livro de estreia do professor e jornalista Rodrigo de Carvalho! Suas concepções, método e estilo rejeitam a propalada e muitas vezes falsa neutralidade do pesquisador, mas o leitor, a leitora, concluirá que a tomada de posição do autor se realiza com transparência e criteriosa ambição de revelar a essência dos fatos. O resultado é um texto prazeroso de ler e revelador de verdades até então oprimidas ou pelas lágrimas dos vencidos ou pela jactância dos vencedores.


    Adalberto Monteiro é presidente da Fundação Maurício Grabois

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