Devo começar por declarar que o sentimento que predominantemente experimentei ao ler a recensão de Luciano Canfora a La Sinistra Assente, de Domenico Losurdo,foi desapontamento: um texto francamente demasiado magro, quando comparado com o que seria talvez de esperar dos comentários de um autor tão importante acerca de outro autor tão importante. Verdade seja dita, o fato de se tratar de escrever em jornais, e para cúmulo submetido a uma certa periodicidade, quase compulsivamente, é algo que deve ser considerado um fator importante neste contexto. Não tenho muitas dúvidas de que este pode facilmente ser considerado… bem, quase um escrito irrelevante, algo que um Canfora momentaneamente sobrecarregado garatujou apressadamente, de modo a satisfazer compromissos com a imprensa. Não se pode exatamente dizer que tenha feito justiça a Losurdo, isso é inegável, mas e daí? Todos nós temos lapsos, todos podemos fazer ou dizer coisas tolas num momento ou noutro, sobretudo se pressionados pelas circunstâncias. Isso não devia decerto ser demasiado considerado; aliás, talvez devesse mesmo ser de todo ignorado… exceto pelo que presumivelmente comporta de relevante enquanto sintomático.

Seguindo o que Canfora (ele mesmo guiado por Leopardi) agudamente regista em La Natura delPotere, o famoso dito de Hegel relativo ao facto de a imprensa ser “a Bíblia do homem moderno” é algo para ser entendido com uma considerável dose degrano salis. A expressão portuguesa de que “escrever em jornais é escrever na água”, muito provavelmente, não é tão absurda assim; aliás, deve reconhecer-se que é fundamentalmente acertada. Talvez, quanto a jornais, faça por vezes realmente sentido pensar nos termos duma “astúcia da razão” que impõe uma momentânea perda em matéria de compreensão, em nome das possibilidades abertas relativas a uma extensão acrescida do conhecimento (pensemos na Reforma religiosa por comparação com o Renascimento, para usar uma analogia histórica habitual, e possivelmente mesmo nas revoluções políticas por comparação com a Reforma religiosa); mas por outro lado uma “astúcia da desrazão” pode também nalgumas circunstâncias operar e nesse caso, em vez duma mera pausa pedagógica, podemos deparar com um declínio global consistente. Daí os leitores de jornais, outrora um estrato intelectual inferior (se comparados com o típico leitor de livros), serem agora um estrato superior, quando contrastados com a maioria de meros espectadores de televisão. Ambas as perspetivas e ambas as possibilidades são, creio, realmente merecedoras de consideração atenta. 

Esta discussão, como é óbvio, podia levar-nos muito longe, assim nos afastando do nosso assunto. Mas pelo menos isso permite destacar um certo número de aspetos sem dúvida crucialmente caracterizadores da nossa época: a precedência da imediatez relativamente à paciência, por exemplo; ou a dominância daquilo que é fragmentário sobre qualquer intuito de compreensão global e em profundidade da realidade (“grandes narrativas”, como se costuma dizer); ou para dizer como o próprio Losurdo, o primado da simples emoção relativamente ao pensamento; e também os modos como estas mutações culturais são suscetíveis de serem de facto monitorizadas e usadas pelos círculos dirigentes, a “classe dominante” hoje em dia impondo os seus intentos não tanto por fornecer o formato global das ideias dominantes, mas sobretudo incessantemente impondo as emoções dominantes: este facto ocorrendo adentro duma genérica “esteticização da política”, a isso podemos tomar como garantido; mas também no quadro de processos culturais ainda mais profundos, aparentemente fazendo as sociedades “pós-gutenberguianas” refluir para modos e processos de agir bastante “pré-gutenberguianos”, e acabando por confirmar de maneira performativa a noção humana de que “a razão é e deve ser apenas uma escrava das paixões, e não pode pretender a mais do que servir-lhes e obedecer-lhes”.

Deve todavia existir alguma limitação à validade desta ideia: de outro modo, qual seria o propósito mesmo de a enunciar, não é assim? A situação presente, por conseguinte, abunda em ironias. De fato, uma delas brota do próprio fato de o livro de Losurdo ser realmente um livro… bem, para dizer a verdade, um livro bastante ausente da recensão de Canfora, que praticamente não se lhe refere exceto no que diz respeito àvexataquaestio da China hodierna, ou para ser mais exato da posição “correta” da “esquerda ocidental” acerca da China hodierna. Esta ironia, porém, labora já num nível semântico secundário, isto é, sobreposta ao fato presumivelmente primordial de que Losurdo, há poucos anos, teve uma importante polémica amigável com outro autor, o entretanto desaparecido CostanzoPreve, cuja ausência constitui provavelmente mais um “elo perdido” relevante para a reconstituição das circunstâncias que tornaram este livro não apenas possível, mas de fato necessário. Agora bem, no que respeita à avaliação dos tempos presentes, francamente penso que os países pertencendo àquilo a que usualmente se chama “o Ocidente”, com os seus/nossos regimes ainda formalmente democráticos, realmente comportam-se no melhor dos casos da forma como os denegridores conscientes das democracias tradicionalmente descreveram estas: a multidão bestial, monstruosa, escrava-das-paixões, gananciosa e propensa à violência, facilmente ludibriável e objeto de manipulação: a lista de clichés é presumivelmente interminável, mas é decerto muito vantajoso ler o útil lembrete de John Robinson Jeffers, mesmo se ele se aplica não exatamente à humanidade em geral, mas apenas àquilo que talvez se possa designar por “humanidade norte-americana”, ou talvez “humanidade ocidental” (aqui, sff: http://www.antiwar.com/orig/jeffers1.html).Num certo sentido, creio que isto pode ser considerado uma “maldição” rogada por aqueles denegridores conscientes ou, dum ângulo ligeiramente diverso, uma profecia simultaneamente auto depreciativa e auto realizada por parte das gerações subsequentes. O autor de Democracia na Europa: História duma Ideologia (um dos meus livros favoritos de todos os tempos, se posso confessá-lo, e na verdade uma bússola política e moralmente indispensável para a compreensão dos nossos dias) provavelmente não discorda de forma substancial daquela ideia. E todavia, temos mesmo assim de suportar a permanente e omnipresente propaganda, e também censura (tendendo por isso a transformar-se igualmente em autocensura), que insiste em descrever a “nossa” história (“Ocidental”) enquanto história dum excecional, mas ainda assim imparável triunfo da democracia, um facto que produziria a nossa capacidade para, e mesmo conveniência de desconsiderar o que quer que fosse ocorrendo alhures no mundo: tudo aquilo que de “nós” não somos os protagonistas tornar-se-ia, por isso mesmo, imediatamente desmerecedor de atenção, aliás nem mesmo remotamente válido.

Obviamente, tudo isto resulta em as nossas sociedades serem conduzidas até um estado de enorme confusão mental; e é precisamente quanto a isso que um elemento surge, no meio do que Canfora argumenta na recensão, que parece particularmente válido: designadamente, a noção de que a China deveria ser reconhecida enquanto significativamente diferente da Europa nalguns aspetos essenciais, o que transforma a experiência global da RPC em algo profundamente “inedito” na história humana. Esse pode bem ser um ponto extremamente válido. Antes de mais, se pretendemos respeitar os outros, devemos respeitá-los na sua alteridade. Isso aplica-se aos estudos ocidentais sobre a China, e estou perfeitamente consciente de que existe uma tão grande tradição de escrita precisamente acerca deste assunto que se torna recomendável evitar este tema logo depois de o ter mencionado. E todavia, como Canfora sabe decerto melhor do que ninguém, o reconhecimento daalteritàé apenas a primeira metade, por assim dizer, da tarefa do estudioso. A outra parte consiste em, por meio dum recorrente apelo à analogia, reorientar aquela descoberta da alteridade, ou novidade, para uma versão enriquecida da mesma fundamental identidade, ou universalidade… a qual incessantemente recomeça o seu “trabalho” de produzir/descobrir alteridade, permanente novidade, etc. E assim, relativamente ao assunto da China, como de resto relativamente a qualquer outro assunto, o investigador deve pegar na sua caixa de ferramentas e, fazendo votos pelo melhor, considerar as evidências baseado nos seus recursos intelectuais, assumindo sempre a possibilidade de descobrir novidade/alteridade por detrás de familiaridade ilusória, ou noutros casos precisamente o oposto: fundamentais equivalências meramente envoltas em roupagem exótica.

Grande Divergências
Uma vez isto assumido, duas ou três coisas adicionais devem ser referidas. Uma delas é evidentemente a ideia duma “Grande Divergência” que, por uma diversidade de motivos (em parte casuais) produziu desde o século XVIII um crescente fosso económico entre as sociedades ocidentais e o resto-do-mundo, em particular a China. Este é um tema extremamente sério, a respeito do qual as teorias podem aliás ser enunciadas duma forma predominantemente auto celebrativa (“nós os ocidentais”, as raças excecionais, a cultura única, blablabla), mas noutros casos, e por oposição, destacando precisamente o elemento aleatório, a precariedade de cada um e de todos os processos de desenvolvimento económico, e de fato também processos civilizacionais. Seja como for, o fato é que hoje em dia a maciça emergência económica da China significou predominantemente a reversão dessa tal Grande Divergência, isso é um fato crucial a reter, como Losurdo pertinentemente refere várias vezes no seu livro. Todavia, e para além de ser extremamente importante em si mesmo, com centenas de milhões de chineses agora podendo acender em pleno aos benefícios da civilização (um aspeto a que só mesmo garotada superlativamente mimada, osenfantsgâtés dos meios académicos ocidentais podem sequer sonhar negar importância), este fato constitui um enorme avanço rumo à descoberta duma Passagem Sudeste para o Espírito do Mundo, ampliando largamente as capacidades de protagonismo dos não-ocidentais no palco da História Universal. Noutros termos, não é apenas a China: é todo o chamado Terceiro Mundo que, depois de ter sido colonizado durantes séculos pelo Ocidente“excecional”, foi também em determinada altura depois explicitamente desprezado e atirado fora no contexto dos círculos neocoloniais (com a África, por exemplo, sendo assumida enquanto mera Lixolândia, “o continente perdido”, uma opinião não raro proclamada como sabedoria oficial relativamente a desenvolvimento económico durante a década de 1990), e neste momento aproveita o ímpeto, na verdade é maciçamente propelido adiante pelo enorme cone de vácuo produzido pelo portentoso “BigPush” económico da China. A título de pequeno exemplo no meio de centenas de outros possíveis, seja-me permitido mencionar o recente caso da reconstrução e plena reabilitação das vias férreas de Angola, construídas em tempos coloniais e depois abandonadas, massivamente sabotadas pela UNITA, frequentemente caídas em completa ruína (muito para Schadenfreude dos espíritos neocoloniais, sempre em alta aqui em Portugal, frequentemente com vestes “de esquerda”), e agora estão finalmente recuperados em pleno e são usados em condições normais, aliás começando a experimentar nova expansão das linhas (enquanto por contraste importantes troços de rede ferroviária são abandonados aqui no “velho Portugal”, cortesia da Eurolândia, do FMI e dos respetivos lacaios), em boa medida graças à cooperação económica Angola-China, com intervenção direta de inúmeros trabalhadores chineses, e na verdade muitíssimas empresas envolvidas, quer públicas quer privadas, mas sempre sob supervisão dos poderes públicos de ambos os países (sim, sim, estou obviamente a par dos boatos, verdadeiros ou falsos: também com muita corrupção envolvida, é claro, é claro…). Mas evitemos perder-nos em detalhes ou seguir rumores. Para além dos autores habitualmente associados à discussão da Grande Divergência (Pomeranz, Huntington, Duchesne, etc.), penso ser crucial mencionar também Giovanni Arrighi, entre outras razões dado o fato de que este reconduz a discussão do recente caso da China a um quadro teórico que, diversamente do que ocorre com aqueles autores, está largamente fundado em Marx. Mas mesmo para lá desse aspeto, penso realmente que Adam Smith em Pequim é absolutamente indispensável, o prezioso studio de Arrighi incluindo sem dúvida algumas das observações mais profundas produzidas nos nossos dias acerca da China.

Naturalmente, isso não conclui a discussão do assunto. Losurdo põe em paralelo a redução da Grande Divergência em termos internacionais com o surgimento duma nova Grande Divergência no seio das sociedades ocidentais, noutros termos o enorme crescimento das desigualdades sociais ocorrido nas últimas duas décadas e picos, uma vez que o desaparecimento do “Bloco Oriental” deixou o capitalismo, e o liberalismo político, suficientemente desenfreados para conseguirem ter as coisas completamente à sua maneira. Estas discussões, porém, correm parcialmente à margem do assunto da China; quer por bons motivos, quer por outros menos bons. Quanto ao capitalismo, embora muitos aspetos da economia chinesa hoje em dia obedeçam à sua lógica, o facto é que a “última instância” da sociedade chinesa continua ser fundamentalmente não-capitalista, quanto a isso concordo em pleno quer com Arrighi quer com Losurdo, quer com Diego AngeloBertozzi, e acho sinceramente que as coisas são tão óbvias que o ónus da prova deve ser colocados do lado dos nossos oponentes, os quais até agora não produziram nada de verdadeiramente relevante para a discussão, seja em matéria de fatos seja quanto a esquemas interpretativos. Em abono da verdade, deve reconhecer-se que CostanzoPreve suscitou questões extremamente interessantes relativamente a esta discussão (ver aqui, sff:http://www.comunismoecomunita.org/?p=2782), mas nenhuma delas em minha opinião realmente capazes de disputar a natureza socialista da sociedade chinesa. Talvez não se trate, de fato, dum socialismo Marxiano, reconheça-se. Talvez seja em vez disso um socialismo meio-Confuciano, meio-Lassalliano, mas e daí? É ainda assim um socialismo, e esse devia definitivamente ser considerado o aspeto mais importante. (A propósito, chamar “capitalismo de estado” a um regime em que a propriedade dos meios de produção é pública, como fizeram Charles Bettelheim e outros a respeito da União Soviética deKrushev e de Brejnev, afigura-se-me não apenas um profundo erro político, mas acima de tudo um completo, refinado absurdo. Bettelheim e outros pensadores soixante-huitards, oficialmente de persuasão maoísta ou semi-maoísta, devem antes de mais ser tomados por aquilo que realmente são, isto é, autores de variedade “anarcoide”, previamente a que alguma discussão relevante e produtiva em termos oficialmente marxistas possa sequer ser iniciada).

Outros temas são o muito debatido crescimento das desigualdades na China, bem como a natureza monopartidária do regime político da RPC. Quanto ao primeiro, provavelmente é bastante mencionar o importante aspeto de que as desigualdades na China, ao contrário do que acontece no Ocidente, respeitam no fundamental o assim chamado princípio Rawlsiano do “maximin”, quer dizer, no caso de a trajetória histórica ter sido outra, mesmo os atualmente mais desfavorecidos na China estariam bem pior do que estão presentemente. As mudanças ocorridas beneficiaram virtualmente toda a gente na sociedade chinesa, de forma crucialmente diferente do que hoje ocorre conosco, Ocidentais. Para além disso, a China qualifica-se plenamente para ser considerada uma sociedade onde os princípios do “estado de direito” predominam, e também onde a mobilidade social, em particular as oportunidades para mobilidade social ascendente, é uma parte importante da fábrica social. E assim, quanto a esse aspeto a RPC, que é de resto um firme esteio do predomínio do direito nas relações internacionais, onde por contraste os EUA e os respetivos satélites são permanentes produtores dum “estado-de-natureza” (artificial, feito pelo homem)hobbesiano, não tem nada a aprender com a pretensa sabedoria Ocidental, especialmente a sabedoria oficial da “Esquerda Ocidental”, que incessantemente procura obter compensações para os seus patéticos falhanços “caseiros”, administrando intermináveis lições e severamente advertindo os nativos do Resto-do-Mundo, com particular ênfase para aqueles que impudicamente se atrevem a divergir das suas tão reconhecidamente esclarecidas prescrições. Enfim, quanto a este assunto reputo conveniente acrescentar que a experiência social chinesa recente resgatou no fundamental não apenas as noções de socialismo e de igualdade, quer em termos intranacionais quer internacionais (ver por exemplo a coluna de Mark Weisbrot, aqui: http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/may/03/world-nothing-fear-us-power-china-economy-democracy), mas na verdade até aos melhores aspetos das nossas sociedades ocidentais, de outro modo hoje em dia completamente caídos no esquecimento, tal como o Keynesianismo, que pode com justiça ser declarado salvo das águas do oblívio pela maciço triunfo económico da China (cf. também o Keynes Blog, sff: http://keynesblog.com/2014/03/18/cosa-ha-salvato-la-cina-dalla-recessione-la-spesa-pubblica-e-le-aziende-di-stato/).

Ginástica eleitoral?
Quanto à querela respeitante a regimes pluripartidários versus monopartidários (e deixando momentaneamente de lado a consideração da interminável quantidade de dispositivos que fazem os nossos regimes formalmente multipartidários afigurar-se regimes de fato monopartidários, muito mais do que realidades propriamente multipartidárias), obviamente considero a primeira opção globalmente preferível, mas dada uma importante ressalva de raciocínio ceterisparibus.Para produzir um contraste vividamente ilustrador, digamos que o Iraque monopartidário de Saddam Hussein constituía indiscutivelmente um oásis de civilização, quando comparado com o deserto de conflitos sectários/tribais que o Império do Caos trouxe para aquela região… é verdade que juntamente com instituições políticas multipartidárias, complementadas com o assassínio de perto de 1 milhão de seres humanos, também é inegável. Neste caso, por conseguinte, seja-me permitido optar pelo “cenário” monopartidário. Por outro lado, não tenho dúvidas em declarar o presente regime multipartidário da Síria de Bashar al-Assad como substancialmente preferível ao anterior regime monopartidário sírio, também deBashar al-Assad… exceto, é claro, quanto ao fato de que o regime atual ter de suportar uma atroz guerra não declarada promovida pelo Império e pelos seus vassalos regionais, o que torna tudo obviamente diferente… e assim, é melhor regressarmos ao estrito clausulado de comparações ceterisparibus.

A China ainda não se aventurou, por enquanto, na experiência política multipartidária. Mas penso que, para além das cláusulas genéricas antes expressas, devemos sobretudo esperar para ver. Quem sabe o que mais de “inédito” pode o futuro revelar, proveniente daquela paisagem? Desejavelmente, salvaguardando o caráter predominantemente socialista da fábrica social, essa pelo menos a minha esperança. Mas o que é realmente o horizonte das minhas esperanças, quando comparado com a quase infinita complexidade das coisas? Por contraste com o caso chinês, vale a pena considerar a trajetória da Rússia pós-soviética: um caso que Canfora aparentemente reduz a uma mera restauração da “ginástica eleitoral”, quanto ao que também me sinto bastante inclinado a recomendar maior cautela. Se considerarmos, por exemplo, os escritos de Igor Strelkov acerca da presente situação (aqui: http://www.globalresearch.ca/russias-hope-for-rebirth-social-justice-and-national-mobilization/5409244), a nossa atenção é imediatamente capturada pela maré-alta adquirida pelo imaginário russo pré-soviético no discurso duma pessoa que é sem dúvida um dos maiores protagonistas do contemporâneo combate da Rússia pela existência, contra as agressivas hordas ocidentais da NATO e dos seus aliados. A escrita de Strelkové, na verdade, quanto a vários aspetos espantosamente similar ao discurso da chamada “ideologia de guerra” alemã de 1914-18, provavelmente bem mais do que o líder militar russo sequer imagina. As suas próprias noções duma multiplicidade de diversas culturas nacionais, cada uma das quais procurando desenvolver as respetivas capacidades lutando por um lugar ao sol, imediatamente faz ressoar Herder, Darwin… e na verdade vários outros filósofos sociais da Europa ocidental. Mas um dos traços da nossa presente situação consiste precisamente no fato de essas ideias emergirem num contexto mental em que se trata de sublinhar a pretensa singularidade russa. Será que isso nos interpela enquanto ocidentais, mas também enquanto pessoas “de esquerda” e, quem sabe, talvez mesmo enquanto “marxistas”? Acho definitivamente preferível que sim. Mas a maioria destes temas diz-nos sem dúvida respeito diretamente quanto à nossa condição de cidadãos da NATOlândia, e na minha opinião o assunto deve ser primordialmente considerado nesses termos.

Terá uma Rússia pós-soviética de apelar a este tipo de discurso de modo a tornar-se capaz de travar a sua luta “existencial”, visando permanecer viva e evitar o projetado desmembramento e subsequente transformação num punhado de satrapias, suscetíveis de subsequente fagocitação por parte do Ocidente? Houve um tempo, recordemo-lo, em que os dirigentes soviéticos decidiram pôr o marxismo provisoriamente de lado, ou pelo menos torná-lo aceitável para o patriotismo russo, ou mesmo induzir uma fusão daquele com o imaginário nacional russo, de modo a propiciar a luta por uma versão bastante engrandecida da Terra-Mãe russa, da Mátria Rússia, a qual inquestionavelmente produziu também a sua “finesthour”. Correspondeu isto (como a Propaganda sempre insiste em dizer) a apenas mais um atraiçoamento do marxismo por parte do infame Ogre Totalitário?É argumentável que sim…mas não é o nosso caso, hoje em dia, com as principais correntes da “Esquerda Ocidental” na melhor das hipóteses “neutrais” e “equidistantes” neste conflito, quando não bem no fundo iniludivelmente pró-Maidan, francamente um caso muito mais sério de traição e, num nível muito mais profundo, realmente capaz de produzir danos irreversíveis nas relações do Marxismo (ou pelo menos do “Marxismo Ocidental”) com a generalidade dos povos do Resto-do-Mundo?

Isso constitui, penso, um grupo de questões merecedoras de consideração bem mais detalhada, ao qual me limitarei aqui a mencionar, acrescentando porém que um dos muitos méritos do livro de Losurdo reside precisamente na sua contribuição para suscitar este tipo de problemas, quase sempre apartados duma “Esquerda Ocidental”, cujo discurso predominante, embora continuando oficialmente “marxista”, e mesmo oficialmente orgulhoso dessa alegada filiação teórico-ideológica, aparentemente ensandeceu, vítima de hubris Ocidental, e perdeu agora por completo (embora talvez não em definitivo) o contacto com o Espírito do Mundo.

Saudações cordiais.
Lisboa, 11 de Novembro de 2014
(39ºaniversário da proclamação da República Popular de Angola)

Tradução de João Victor Moré Ramos
(Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina)