Acaba de chegar ao Brasil Submissão (Alfaguara, 2015), o polêmico livro de Michel Houellebecq, que ficou marcado pelo atentado ao semanário Charlie Hebdo em Paris em 7 de janeiro deste ano. Nesta data, Houellebecq estampava a capa do jornal e lançaria o livro que conta a história fictícia da ascensão do Partido Irmandade Muçulmana, centrado na figura do personagem Mohammed Bem Abbes, que acabaria, segundo sua previsão, tornando-se presidente da França em 2022. O livro acabou recebendo, talvez por isso, apressadas análise do seu conteúdo, que trata diretamente do Islã como uma força político-social crescente na Europa.

No Brasil, como sempre, importamos não apenas a literatura em si, mas também as polêmicas literárias, exercitando a nossa congênita e quase geral preguiça para pensar as coisas em sua especificidade e em relação com as nossas próprias mazelas. Assim, o que se pode ver montado na imprensa brasileira nos últimos dias a respeito da obra de Houellebecq é uma macaqueação do debate superficial que se desenvolveu sobre a obra até aqui. Esse debate está, sobretudo, vinculado ao questionamento da noção de “futuro muçulmano” da Europa antevisto na ficção de Houellebecq. Esquecem-se de que, quando um autor ficcionaliza o futuro de uma determinada sociedade, não está querendo prever o que vai acontecer. Quando um autor da altura de Houellebecq figura ficcionalmente certo futuro historicamente contextualizado, na verdade, está intensificando forças do processo social presente, que, sem a energia da ficção, permaneceriam difusas para nós que as vivenciamos por dentro cotidianamente. Portanto, em Submissão, não importa o que Houellebecq pretensamente preveria em relação ao futuro da Europa e sim o que ele nos faz ver em relação ao presente da civilização ocidental.

O que é a política burguesa hoje e não o que ela será (e isso em escala mundial) é o núcleo histórico de Submissão. Quem o ler, em determinado momento, dará de cara com essa avaliação, que faz gelar: “Bem Abbes sempre evitara comprometer-se com a esquerda anticapitalista; a direita liberal ganhara a ‘batalha das ideias’, ele entendera perfeitamente isso, os jovens tinham se tornado empreendedores, e o caráter insuperável da economia de mercado era, agora, unanimemente admitido. Mas, sobretudo, o verdadeiro lance de gênio do líder muçulmano foi entender que as eleições não se disputariam no terreno da economia, e sim no dos valores”. Ora, trata-se de uma avaliação que nos serve para enxergar e problematizar corridas eleitorais que se desenvolvem hoje no mundo. O modelo econômico capitalista relega o debate acerca da emancipação política das classes subalternas a um plano secundário e distante, que cheira a anátema. Questões que envolvem valores cada vez mais definem a aparência do debate político das democracias burguesas, fazendo-se como determinantes em detrimento da essência da história, ou seja, a luta de classes.

Como diz o narrador, perceber este fato e dominá-lo como ninguém é o grande talento do líder da Fraternidade Muçulmana, que chegará ao poder na narrativa de Submissão. O que Ben Abbes deseja, afirma o personagem Alain Tanneur, um veterano do serviço secreto que acompanhara a ascensão do líder do Islã francês, é: “encarnar um novo humanismo, apresentar o Islã como uma forma acabada de um humanismo novo, reunificador”. Basta olhar para o Brasil de hoje para percebermos a dificuldade que as esquerdas enfrentam para construir coletivamente um “um novo humanismo” capaz de fazer frente ao recrudescimento do conservadorismo propalado pela pauta reativa aos direitos humanos construída recentemente pela direta local. A dificuldade da esquerda tem a ver com uma virtude sua: não é possível construir esse novo humanismo sem romper com o modelo econômico responsável pela reprodução do capitalismo nos termos locais e globais. Mas, da forma como se configura como impasse, esta é também uma condição limite para a esquerda: como promover verdadeiros avanços se nos prendemos quase que totalmente na pauta dos costumes? Fica a pergunta e a sugestão para que se leia o livro de Houellebecq pensando no presente político brasileiro e as excrescências políticas (Barbosas, Cunhas, Aécios, Gilmares, Richas, Felicianos, Bolsonaros) que querem submeter o povo a um destino que parece confortável, mas tem cheiro de danação. Submissão tem esse inegável valor: ajuda a enxergar algumas posições do debate político atual com uma clareza um pouco maior. A má notícia, por agora, é que não temos, salvo engano, um romancista de fibra para entrar com disposição crítica e talento narrativo no nervo dessa questão. Temos de importar a leitura de nossos males via literatura francesa, ainda!

Cabem ainda algumas palavras acerca da qualidade literária do livro. Não tenho dúvida de que Houellebecq escreve como um clássico. No que ele produz está muito bem acumulada uma tradição que passa por Baudelaire, Balzac e Flaubert. Mas Submissão, em linhas gerais, é um livro ruim. A narrativa se articula mal em termos de ritmo. A primeira parte é visivelmente mais bem composta que a segunda, e o livro se arrasta do meio para o final. A construção dos personagens que fazem o papel de interlocutores do narrador é defeituosa. Tanto Alain Tanneur, que explica ao narrador o lugar de Ben Abbes no contexto político francês, quanto Renon Rediger, que termina por explicar o “Islã afrancesado” ao narrador, têm a consistência frágil de meros títeres falantes.

Além do mais, há um mal que é externo à narrativa, mas a que um autor está sempre sujeito. No caso de Submissão, isso foi muito cruel: nunca um livro envelheceu tão rápido. O atentado ao Charlie Hebdo fez um livro que fala do futuro tornar-se, em velocidade impressionante, uma “coisa do passado”. Admirável mundo novo e 1984, livros que igualmente imaginaram terrivelmente o futuro, demoraram bastante para passar pela prova das confirmações/contradições do tempo. O atentado de 7 de janeiro tornou o presente infinitamente mais terrível que o futuro que Houellebeq imaginou em sua narrativa e ela perdeu força.

Como sempre, o melhor de Houellebecq está no protagonista: desencantado, niilista, de contornos nietzscheanos. Entretanto, aqui, ele parece um pouco mais “acomodado” do que em O mapa e o território, ou em Plataforma, por exemplo. Estes são livros de maior envergadura. Tenho uma teoria, não totalmente formulada e muito menos testada, de que grandes autores que acham a sua fórmula literária passam a viver pelo esplendoroso esgotamento de seu talento. O que não deixa de ser uma afirmação desse mesmo talento. Afinal, não é para todos continuar produzindo esplendor a partir de um esgotamento. Isso é só para os grandes (Calvino? Borges? Drummond? Garcia Marquez? Rosa?). Em termos literários, Submissão marca a submissão de Houellebecq a si mesmo. O dito de Huysmans que o autor usa como epígrafe parece bem verdadeiro para o próprio Houellebecq: “Estou um tanto enfastiado de minha vida, um tanto cansado de mim, mas daí a levar outra existência vai uma distância!”. Nas tramas frágeis e ensimesmadas de Submissão está o escritor em um labirinto de mercadoria e derrogação da arte, que nem a mente perversa e escandalosamente dessacralizante de Houellebecq seria capaz de criar.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com